DOI: 10.29112/ruae.v10i2.2596
Dossier
Produzir humanidade a partir do leite doado: uma análise a partir de redes laboratoriais de Banco de Leite Humano
Producing humanity from donated milk: an analysis of Human Milk Bank laboratory networks
Producir humanidad a partir de leche donada: un análisis de las redes de laboratorios de los Bancos de Leche Humana
Camila Vaz Correia1 ORCID: 0000-0001-9280-3772
1 Universidade Nacional de Brasília. camilavazcorreia@gmail.com.
Resumo
Abordo os feitos das redes laboratoriais de Bancos de Leite Humano (BLH) no Brasil que caracterizo como expressão de discursos e práticas sócio-cientificamente autorizadas. Argumento que a doação do leite «materno», considerado «biomedicamente» como uma matéria-prima, fluido da natureza, essencialmente produto de um corpo «feminino natural» apto para um consumo específico, ao passar por uma cadeia de procedimentos químicos e sociais se apresenta como um feito da cultura, isto é, um produto do complexo biotecnológico e do pensamento científico apto a ser consumido por toda a humanidade. Deste modo se transforma num produto universal, purificado, que descentraliza e despersonaliza o papel feminino da produção do leite a partir de operações técnocientíficas e burocráticas de controle, «disciplinarização» das mulheres e de seus lares. Para tanto, ponho em diálogo a própria experiência como doadora de leite demonstrada a partir de um relato autoetnográfico às análises documentais realizadas a partir de levantamento bibliográfico entre manuais e produções informativas e científicas da área da biomedicina. Realizo, a partir desses materiais, uma análise antropológica baseada nos estudos sociais da ciência e da técnica. Utilizo o rastreamento das etapas de tratamento de leite doado como um instrumento articulador para a construção do texto possibilitando-me conectar os distintos actantes dentro desta rede sociotécnica, que tem como objetivo demonstrar o tensionamento que há entre o conceito de humanidade e maternidade fundado no leite humano-materno a partir da utilização de estratégias e técnicas politicamente orientadas.
Palavras-chave: Banco de Leite Humano, doação de leite, rastreamento, «disciplinarização», purificação.
Abstract
I examine the accomplishments of the laboratory networks of Human Milk Banks (HMBs) in Brazil, which I describe as manifestations of socially and scientifically sanctioned discourses and practices. I argue that the donation of “maternal” milk, which is considered “biomedically” to be a raw material and a “natural female” body fit for specific consumption, becomes a cultural achievement when it undergoes a series of chemical and social procedures. In this way, it is transformed into a product of the biotechnological complex and scientific thought that is fit for consumption by all of humanity. Thus, it becomes a universal, purified product that depersonalises and decentralises the feminine role in milk production through technological and bureaucratic control and “disciplinarisation” of women and their homes. To this end, I present an autoethnographic account of my experience as a milk donor alongside documentary analyses based on a bibliographic survey of manuals, informative publications and scientific literature in the field of biomedicine. I conduct an anthropological analysis based on social studies of science and technology using these materials. Tracking the stages of donated milk treatment enables me to connect the different actors within this socio-technical network and demonstrate the tension between the concepts of humanity and motherhood based on human-maternal milk, through the use of politically oriented strategies and techniques.
Keywords: Human Milk Bank, milk donation, “disciplinarization”, tracking, purification.
Resumen
Discuto los logros de las redes de laboratorios de Bancos de Leche Humana (BML) en Brasil, que caracterizo como una expresión de discursos y prácticas sociocientíficamente autorizadas. Argumento que la donación de leche «materna», considerada «biomédicamente» como una materia prima, un fluido de la naturaleza, esencialmente producto de un cuerpo «natural femenino» apto para el consumo específico, al pasar por una cadena de procedimientos químicos y sociales, se presenta como un logro cultural, es decir, un producto del complejo biotecnológico y del pensamiento científico apto para ser consumido por toda la humanidad. Así, se convierte en un producto universal, purificado que descentraliza y despersonaliza el rol femenino en la producción de leche mediante operaciones tecnocientíficas y burocráticas de controle, «disciplinarización» de las mujeres y de sus hogares. Para ello, pongo en diálogo mi experiencia personal como donante de leche, que demuestro mediante un relato autoetnográfico, con los análisis documentales que he realizado a partir de una revisión bibliográfica de manuales y publicaciones informativas y científicas del área de la biomedicina. A partir de estos materiales, propongo un análisis antropológico basado en los estudios sociales de la ciencia y la tecnología. Utilizo el seguimiento de las etapas del tratamiento de la leche donada como hilo conductor del texto, lo que me permite conectar a los distintos participantes de esta red sociotécnica. El objetivo es demostrar la tensión existente entre los conceptos de humanidad y maternidad basados en la leche humana-materna, mediante el uso de estrategias y técnicas políticamente orientadas
Palabras clave: Banco de Leche Humana; donación de leche; «disciplinarización»; rastreo; purificación.
Introdução
Estamos em março de 2020. «Trancada» dentro de casa,[1] acompanho as notícias de uma pandemia que já faz suas vítimas. O presidente em exercício neste momento, Jair Messias Bolsonaro, declara que não devemos nos preocupar com o Coronavírus, pois não passa de uma «gripezinha» sem importância (Estado de Minas, 2021). O que se passou no decorrer desse ano, colocou o Brasil em evidência no cenário internacional espantosamente como um dos países em que mais se morria de covid-19.
Vivendo uma dupla quarentena,[2] com um recém-nascido no colo e sem prévia experiência com a maternidade, acudo a pesquisas na internet para responder infinitas dúvidas e temores que me veem à cabeça. Em meio a essas buscas, deparo-me com uma matéria de jornal, que se assemelhava a essa: «Queda no estoque de banco de leite materno é um chamado à doação». Na sequência desta reportagem, seguia uma explicação que indicava que «com a pandemia de covid-19, algumas cidades registraram queda de 50 % nos estoques de banco de leite; estímulo à doação é essencial para salvar vidas» (Hoshino, 2020).
Busco o «manual» de primeiros cuidados que recebi no dia da alta pós-parto em uma maternidade pública na cidade do Rio de Janeiro vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Leio todas as instruções que estão dispostas de formas numeradas e em tópicos, mas não encontro nada sobre doação de leite. Somente a indicação do contato do Banco de Leite Humano (BLH) caso enfrentasse dificuldades ou dúvidas com o processo da amamentação. Penso que durante todo o pré-natal realizado entre dois postos de saúde da rede pública do SUS e em duas cidades distintas do estado do Rio de Janeiro, nunca fui informada sobre a possibilidade de doar leite.[3]
As primeiras investigações sobre um Banco de Leite Humano
Começo a investigar como funciona e qual o propósito de um BLH. Acudo ao manual produzido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para regular o funcionamento, prevenção e controle de riscos do BLH que possui caráter orientador para todos os bancos de leite humano do Brasil. Segundo consta nesse manual do ano de 2008, o Banco de Leite Humano se configura atualmente como um «dos mais importantes elementos estratégicos de política pública em favor da amamentação» (Almeida em Brasil, 2008, p. 9).
No Brasil, podemos contar com uma extensa Rede de Laboratórios de Banco de Leite Humano (rBLH-BR) vinculada à Fundação Oswaldo Cruz que é considerada «a maior e mais complexa rBLH do mundo, com aproximadamente 160 mil litros de leite humano distribuídos» todos os anos (rBLH-BR, s.d.a). Atualmente se contabilizam 229 laboratórios de BLH e 235 postos de coleta de leite humano (PCLH) distribuídos em todas as macrorregiões brasileiras. O Brasil se tornou referência mundial em desenvolvimento tecnológico por aliar baixo custo à alta qualidade no tratamento do leite humano, quantificada através da eficácia na diminuição da mortalidade neonatal. Seu modelo é exportado para países da América, África e Europa por meio de tratados de cooperação internacional.
O BLH que à sua inauguração se configurava unicamente como um centro de captação (compra) e distribuição (venda) de leite a partir da cooptação de mulheres (as chamadas «amas de leite modernas») a cambio de ofertas econômicas e vantagens de atendimentos, sofre uma mudança de paradigma.[4] A atuação do novo modelo de BLH é ampliada e além de realizar a coleta, análise, processamento e distribuição do leite doado por mães que o produzem em excesso a recém-nascidos que normalmente estão internados na maternidade, o Banco de Leite Humano funciona como um centro que presta serviço de orientação e apoio à amamentação.
BLH como uma rede sociotécnica
Este conjunto de práticas de saúde, vinculada ao aleitamento, engloba um emaranhado de operações logísticas, bioquímicas e políticas, resultado de uma série de interações entre agentes de saúde, doadoras, bebês (e mães) receptores, normas técnicas, equipamentos, aparatos e regulamentações nacionais e internacionais que atendem a possíveis demandas estatais de cuidado, porém não se resume a elas. Em outras palavras, se trata de uma cadeia de vínculos «sóciotécnicos» que conecta mães doadoras a bebês receptores através de uma rede de processos e interações humanas e não-humanas. Acima eu me aproprio do termo de Latour, pois assim como o autor, me nego a «conceber a humanidade e a tecnologia como polos opostos», pois seria, «com efeito, descartar a humanidade: somos animais sociotécnicos e toda a interação humana é sociotécnica. Jamais estamos limitados a vínculos sociais» (Latour, 2001, p. 245). Inclusive esta pesquisa se baseia em uma gama de interações que passam por objetos, corpos, inscrições no mundo, gramáticas disciplinares antropológicas, engajamentos, levantamentos bibliográficos seguramente e talvez intencionalmente enviesados e reflexões críticas que apesar de todas as boas intenções, sempre estarão baseadas na história de vida, criação e estudo da autora e dos autores que direcionaram essa pesquisa, que possivelmente organizam, mas também colonizam a trajetória de toda essa escrita. O laboratório de BLH construído ou reconstituído neste artigo, não deve ser visto somente como um aparato estatal que atua como intermediário de um processo de transfusão ou transferência de leite entre uma mãe lactante a um bebê receptor, mas como um produtor, difusor e construtor de efeitos políticos, históricos e sociais passíveis de serem rastreados e conectados em uma rede de múltiplos agentes.
Seguindo o rastro da doação de leite
A primeira tentativa de doar leite começou logo após eu tomar conhecimento da queda no estoque dos bancos no Brasil e depois de pesquisar quais seriam os requisitos para me tornar doadora. Deveria buscar o BLH mais próximo ao local em que residia e assim o fiz. Entrei em contato com o respectivo BLH localizado na zona metropolitana do Estado do Rio de Janeiro.[5] Após algumas tentativas, consigo falar com a responsável pelo BLH. Ela informa que uma enfermeira iria até a minha casa levando um kit de doação, e caso eu não estivesse com o exame para a detecção de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST»s – teste rápido) ainda na validade, realizaria o teste no momento da visita. Avisou-me também que me informaria antes o dia e o horário da visita a ser agendada. Meu filho estava com três meses e eu já estocava leite para caso fosse necessário eu me ausentar. Comecei a extrair um pouco mais todos os dias, para garantir que teria excedente para doar também. Sabia que se não insistisse com a extração todos os dias, seria mais difícil obter sobra da produção nos meses subsequentes, já que a produção é ajustada conforme a demanda, seja pela sucção do bebê, seja pela realização do movimento de extração diário. Sendo assim, a «ordenha» ajudaria a gerar excedentes para a doação. Mais adiante detalharei essa e outras etapas, protocolos e exames necessários para entender o processo de doação, extração e produção de leite do «binômio mãe-bebê».
Um mês aguardando o segundo contato telefônico do BLH, eu retorno à ligação para confirmar se meus dados tinham sido registrados corretamente. A mesma mulher, responsável pelo banco, me diz que não poderia receber minha doação, pois estavam sem o recebimento dos frascos de vidro utilizados para armazenar o leite doado.[6] Eu falei que tinha vidros esterilizados em casa, específicos para esse fim, e que poderia doar junto com o fluido, mas ela respondeu que segundo os protocolos laboratoriais, todos os envases deveriam ser esterilizados pela própria equipe do banco de leite, não podendo ser delegada às mães essa parte do processo de doação. Disse-me que tinham quinze mães inscritas e dispostas a doar, assim como eu, e que somente por «esse detalhe» não poderia aceitá-las. Eu armazenava o excedente da produção de leite em vidros e bolsas esterilizadas específicas para esse fim, aptas, a meu ver, para serem consumidas pelo meu filho. Do ponto de vista biomédico, entretanto, esse leite poderia apresentar falhas no processo de doação que futuramente o desclassificaria como alimento apto a ser consumido por um recém-nascido, receptor de leite humano via BLH.
Por esse único «detalhe» no fornecimento de vidros, novas doadoras foram impedidas de doar e é possível que o leite doado tenha chegado a menos receptores. Acredito que com essa experiência temos um bom exemplo de que «jamais nos defrontamos unicamente com objetos. Objetividade e subjetividade não são polos opostos. Elas crescem juntas e crescem irreversivelmente» (Latour, 2001, p. 245) e que a rede sociótecnica é formada por essas relações e por essas trocas e a falta de um «detalhe», uma engrenagem, pode implicar num corte parcial ou produzir um resultado diferenciado nessa rede. O não recebimento dos envases gerou um não aumento de doadoras naquele BLH, o que provavelmente impactou no trabalho de coleta, tratamento e distribuição do leite conforme o quantitativo esperado, inclusive num período conturbado de princípio da pandemia de covid-19. O interessante aqui é pensar que o fluir ou não de um processo depende de variáveis e interações passíveis de produzir efeitos que não podem ser controlados e baseados exclusivamente pela agência humana.
A história da primeira tentativa frustrada de me tornar doadora de leite materno me instigou a refletir antropologicamente como o caso da doação que ocorre a partir da intermediação do BLH, entretanto, se configurara como mais uma sequência de processos relacionais institucionalizados e que são passíveis de serem rastreados, e que como já vimos acima, fazem parte de uma rede de interações que permitem que operações laboratoriais e científicas se conectem com outras cadeias de relações que podem produzir efeitos sociais ímpares. A partir da primeira reflexão, decidi reservar um caderno para escrever, questionar e «dialogar» com o que eu estava vivenciando. Era um momento crítico do meu puerpério e eu usava esse caderno também para imaginar possíveis caminhos e cenários para uma futura pesquisa. Após a realização de pesquisa bibliográfica, chegando ao processo de escrita da minha dissertação,[7] pensei em utilizá-los somente como uma estratégia narrativa para não «cansar» o leitor com tantas informações vindas de manuais e protocolos médicos, porém esses dados «insistiam» em ganhar protagonismo. Foi uma questão que me preocupou muito e a cada revisão eu tentava retirar trechos que acreditava que me expusessem a situações que não queria ilustrar e a uma autoetnografia que fugia ao meu foco inicial. Talvez eu quisesse «purificar» a experiência passada com meu corpo, minha casa, minha vida, porque assim como Allebrandt (2023), não queria passar de pesquisadora a uma pesquisada «exotizada», como é de costume no ofício do antropólogo quando lida com seus interlocutores. Ao longo da escrita, percebi que a minha experiência associada às descrições detalhadas das etapas laboratoriais documentais, poderiam trazer a reflexão e análise a cargo do leitor. Ou seja, através das minúcias dos procedimentos laboratoriais, é possível demonstrar que ele é constituído, assim como qualquer objeto técnico, por disposições políticas em sua materialidade e desse modo, o que se encontra em tensionamento faz parte de uma política do corpo que aqui se é configurada na disputa entre leite materno e leite humano.
Ao me transformar em doadora de leite materno, primeiramente me vinha à cabeça que ao mesmo tempo em que poderia «ajudar outras mães e bebês, já que eu tinha tempo e condições físicas», me parecia uma maneira viável de realizar uma «etnografia em laboratório» num período de pandemia e «isolamento social» associado aos cuidados de um bebê que demandava muita atenção. Concentrei-me nesta primeira experiência para que posteriormente pudesse realizar um levantamento bibliográfico para me aproximar aos debates antropológicos. Por isso decidi realizar um segundo intento de me tornar doadora para apreender de um determinado ângulo como que as práticas de doação funcionavam. Como estava de mudança para a capital do Estado do Rio de Janeiro, e me instalaria em outra zona da cidade, fiz contato com a matriz correspondente do BLH através de uma busca pela internet e iniciei uma conversa pelo aplicativo do Whatsapp.[8] Após conversas com a nutricionista do banco – assim como o recebimento dos kits de extração de leite e envio de formulários, e outros processos que detalharei mais adiante- e após aproximadamente um mês desde o primeiro contato, eis que chega o dia em que faço essa anotação em meu diário:
Hoje enchi o primeiro potinho de leite. Que felicidade grande em saber que contribuirei, mesmo que parcialmente, com a alimentação de outros bebês que necessitam tanto (29 de novembro, diário pessoal).
E a partir dessa etapa da doação, o leite materno, já produto de relações e associações, ao passar por uma cadeia outra de interações, seja laboratorial, estatal ou jurídica, incorpora outros elementos em suas práticas. Para que possamos exemplificar, a Fiocruz disponibiliza atualmente quarenta e oito normas técnicas (NT) que regem o funcionamento da rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (rBLH-BR) e que
contemplam os procedimentos de rotina e as condições mínimas necessárias ao funcionamento de um BLH. As Normas Técnicas seguem o modelo adotado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e apresentam referências bibliográficas que possibilitam melhor entendimento de cada uma delas (Rede Global de Bancos de Leite Humano-Brasil, s. d. b).
Além das normas acima citadas, no sítio eletrônico da instituição encontramos também resoluções e documentos técnicos e científicos. As normas passam por periódicas substituições, já que constantemente as diretrizes científicas mudam os seus posicionamentos. Nos primeiros meses de pandemia do covid-19 no Brasil, constantemente um decreto, lei ou resolução era divulgado na tentativa de reduzir os danos da transmissão do vírus ou apresentar novas «descobertas» ou orientações.
Com relação à amamentação e doação de leite, surgiram indícios de que uma mulher que fosse vacinada grávida ou que estivesse amamentando, passaria os anticorpos para seu bebê pela placenta ou pelo leite materno, imunizando-os da contaminação do referido vírus. Como observam Nucci e Alzuguir (2023), o leite materno aqui configurado como um «veículo» de passagem de anticorpos, possibilitou a organização de um movimento (Lactantes pela vacina) em prol da dupla imunização através da vacina. Além dessa forma de produção de «biossocialidades[9]» em que o leite se configura como «veículo» com potência e agência, porém não imunizante, mas sim contaminante, podemos encontrar diretrizes e práticas médicas nas quais mulheres portadoras de enfermidades, em situações específicas e de excepcionalidade, são «estimuladas» a deixar de amamentar seu filho e proibidas de doar leite.
No manual da Anvisa, podemos acessar um catálogo de enfermidades e suas correlatas prescrições ou restrições para a amamentação e a doação de leite. Enquanto uma prática pode ser considerada contaminante num determinado período e imunizante em outro, o caráter prescritivo das normas científicas emerge como o discurso válido, oficial e verdadeiro de qual prática seguir. As constantes atualizações, renovações e superações de paradigmas caminham em paralelo às verdades científicas, sem que gerem contradições. O caso do impedimento da amamentação por mulheres portadoras de HIV serve como um grande exemplo dessa transformação. O próprio discurso de mudança de paradigma da história do BLH surgiu em base ao suposto de que devido a possível contaminação do referido vírus através do leite materno, seria e foi necessário alterar o sistema de captação e tratamento do leite. Na literatura médica e de enfermagem, o protocolo de atendimento a uma mulher portadora da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, recém-parida, pode passar pela adoção de técnicas como o uso de faixas para a compressão das mamas, gelo e sutiã bem apertados e como medida última, a «supressão farmacológica com uso do inibidor de lactação» (Abrão, 2013). Essas práticas normalmente são descritas pelas usuárias como atos extremamente dolorosos físico ou psicologicamente, além de descritos como métodos punitivos e discriminatórios segundo o próprio manual do Ministério da Saúde (Brasil, 2014).
Muito recentemente, surgiram estudos e uma diretriz publicada pela Academia Americana de Pediatria dos Estados Unidos da América (AAP) permitindo a amamentação por mulheres portadoras do vírus do HIV, «desde que tenham carga viral indetectável» e estiver realizando o tratamento medicamentoso (Cupani, 2024). É possível que essa alteração seja revista também no Brasil e seja atualizada junto aos protocolos e o conjunto de normas nacionais. O manual da Anvisa publicado em 2008 atualmente se configura como o principal guia para ser implementado dentro dos laboratórios de BLH brasileiros. Ademais do manual e das normas, existem outros conjuntos de documentos científicos, jurídicos, informativos que compõem esse corpus regimental como guias, portarias, resoluções. Todo esse conjunto de normas, que faz parte de um corpus escrito, relacionadas a práticas sociais intrinsecamente em comunhão com o contexto político, social, moral - atua como registro que ordena a prática no laboratório, este, «um scriptorium, um lugar para ler e escrever, cujo principal objetivo é a criação de ordem – o ordenamento da natureza» conforme define Silva acerca do livro de Latour e Woolgar intitulado Vida de Laboratório (Da Silva et al., 2019. p. 221). E o registro e a produção literária, segundo os autores acima citados, é o que configura o principal trabalho de um cientista em laboratório. A relevância dos registros dentro de um laboratório de BLH é o que ordena toda a trajetória do leite antes mesmo dele ingressar ao centro de tratamento. Essa trajetória, chamada de rastreabilidade, se apresenta como um dos dispositivos mais importantes do funcionamento do banco de leite e que perpassa todas as etapas laboratoriais desde a coleta, recepção e administração do leite.
Existe uma gama de publicações específicas para definir e ordenar este processo, que percorre todos os passos de tratamento do leite e da doadora antes de sua extração até a distribuição ao consumidor final. A Norma Técnica 17.21 (Rotulagem do Leite Humano Ordenhado Cru) define rastreabilidade como:
Procedimento que possibilita o registro das informações para acompanhamento de todo o percurso da matéria prima, desde sua origem até o uso do produto final, com o objetivo de manter os padrões de qualidade (Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, 2021 p. 4).
No Manual da Anvisa consta que compete ao posto de coleta de leite as atividades de «registrar as etapas e os dados do processo, garantindo a rastreabilidade do produto», assim como manter esse sistema de informação seguro e acessível às «autoridades competentes», e ainda aprimorar e estabelecer ações que permitam e facilitem a rastreabilidade desse fluido (Brasil, 2008, p. 21).
Considero o rastreamento realizado no BLH como o elemento articulador entre todas as práticas laboratoriais e agentes desta referida e estudada rede «sóciotécnica». E, portanto, utilizarei a própria categorização laboratorial de rastreamento do leite como ponto de partida para seguir os vestígios das práticas laboratoriais. Assim como Felipe Süssekind (2010) na tese «O rastro da Onça», busco seguir o rastro a partir dos «aspectos técnicos e históricos» (p. 226) da prática de transformação de um leite materno doado por uma mulher em um leite humano-tratado-distribuído por uma instituição estatal. E que é «possível discernir uma série de horizontes de práticas diferentes» (p. 225) construídas e ordenadas a partir das fontes distintas como a minha experiência como doadora de leite materno aliada às análises das produções científicas e de divulgação que envolvem um conjunto de «actantes» em uma rede «sociotécnica» descritas ordenadamente.
Seguindo o registro do meu diário, dois dias depois de encher o meu primeiro frasco de leite, chegou o dia de entregá-lo ao motorista do laboratório, que vinha buscar no prédio onde eu morava. Nesse momento, desço pelo elevador com o vidrinho na mão, feliz por poder contribuir. Eis que quem me espera na portaria não é o motorista, mas sim a própria nutricionista responsável pelo BLH e que eu converso via Whatsapp. Seu nome é Katia[10] e ela me pergunta como eu me sinto. Pergunta-me se melhorei de um resfriado que tinha contraído dias antes e que me impediu de extrair mais leite para a doação. Surpreendo-me com a visita inesperada e sem aviso prévio, mas respondo que estou bem e que pensava que entregaria o envase de leite para o motorista, conforme ela me havia informado. Ela diz que hoje saiu junto ao motorista para realizar visitas de coleta e que é comum que na entrega da primeira doação, ela vá para conhecer a doadora. Entrego o frasco de leite para ela que a acondiciona numa bolsa térmica comum, dessas que vendidas em supermercados em épocas de festas de fim de ano ou que se ganha ao comprar uma ave natalina, normalmente com o símbolo de uma famosa marca de alimentos ultraprocessados.[11] Pergunto pelo acondicionamento do leite, já que está fazendo muito calor e não tem sequer um cubo de gelo dentro da bolsa. Ela me responde que dentro do carro há um isopor com gelo reciclável, onde colocar todas as doações e me garante que o leite estará bem acondicionado. Eu aciono que sim com a cabeça e ela me agradece pela doação. Antes disso, quando ela me pergunta sobre o meu estado de saúde, também me alerta para informá-la em caso de suspeita de covid-19. Posteriormente, para a realização dessa pesquisa, tomo conhecimento a partir do Manual da Anvisa, que há a prescrição da visita da funcionária do BLH à doadora em sua primeira doação, «sempre que possível» e lista em tópicos as observações que essa profissional de saúde deve estar atenta:
• A amamentação do filho da doadora, objetivando o adequado posicionamento e pega da aréola para manutenção da amamentação exclusiva;
• Se a criança não está recebendo água, chás ou qualquer outro líquido ou alimento antes de completar seis meses de idade;
• Se a criança não faz uso de mamadeira, chupetas e bicos, entre outros Produtos (Brasil, 2008. p. 90).
Após conversa com Katia e entrega do frasco de leite doado, entro no elevador, me olho no espelho e fico pensando nessa visita inesperada. Sinto-me desarrumada, desconfortável e penso que Katia poderia ter me avisado antes. Poderia até chamá-la para subir ao meu apartamento, mas aí imediatamente penso que não seria uma boa ideia, pois estamos no meio de uma pandemia. Ainda bem que eu usava a máscara de proteção. Imagina se justamente nesse dia, eu me esqueço de descer com a proteção, como aconteceu em um dia anterior? Ela poderia pensar que não estava cumprindo bem os protocolos sanitários ou que eu era «negacionista»[12] e não acreditava no efeito da transmissão do vírus. Dúvidas e questionamentos pairam sob a minha cabeça, mas entro em casa e esqueço momentaneamente deste episódio, pois meu filho já está chorando e eu precisava amamentá-lo.
Após a entrega da minha primeira doação, acesso a publicação do perfil do Instagram[13] do BLH do qual era doadora, em que anunciavam que atingiram o quantitativo de dois mil frascos de leite pasteurizados durante sua trajetória institucional. Imediatamente me veio ao pensamento que poderia ser o meu leite ali. Anotei no diário que estava feliz por poder pertencer a essa rede de mulheres, mesmo que de forma anônima, e que me sentia orgulhosa e poderosa. Hoje sabendo que há uma etapa da seleção e da classificação do leite doado que conta com uma «técnica analítica» – «que permite o cálculo estimado do conteúdo energético» - que pode misturar o Leite Humano Ordenhado Cru (LHOC) de diferentes doadoras e doações (pool), mudaria minha reflexão. Perguntar-me-ia quantos «leites» estariam naquele envase? Quantas mulheres contribuíram para o preenchimento daquele frasco com leite pasteurizado? Será que a minha parte da doação estava ali misturada?
Segundo o manual da Anvisa o leite é composto por mais de duzentas e cinquenta substâncias distintas compartimentalizadas em três subsistemas e frações que congregam os seus constituintes. Na etapa de porcionamento laboratorial do leite, essa mistura acontece porque as necessidades nutricionais de cada bebê variam de acordo com sua idade (gestacional, corrigida, de lactação, extrauterina) e questões relacionadas à sua saúde e potenciais problemas decorrentes de sua prematuridade. Estes últimos necessitam de uma prescrição médica mais específica quanto à composição final do leite ingerido. Geralmente se faz uma triagem do leite a partir da idade de lactação, que seguindo a tabela de classificação, varia desde o colostro (leite produzido até o sétimo dia pós-parto), passando pelo leite de transição (entre o sétimo e o décimo quarto dia) até chegar ao leite maduro (após 14 dias do nascimento do bebê). Há ainda o leite produzido a partir do nascimento de um bebê prematuro, ou seja, que nasceu antes das 37 semanas de gestação e que se configura como um parto pré-termo. Como a idade do bebê nascido prematuramente é contada, para efeitos médicos e de doação, a partir das 37 semanas completas juntando a contagem extrauterina, (a chamada de idade corrigida), as prescrições podem ter essa variabilidade de amadurecimento do leite, já que a idade de lactação seria distinta da idade de nascimento. Ainda há os bebês que são chamados de exclusivos,[14] ou seja, recebem apenas o leite doado pela sua mãe, e que por alguma razão, principalmente decorrente de internação hospitalar, imaturidade intestinal, de deglutição, ou problemas respiratórios, não podem ser amamentados diretamente no seio. Nestes casos, a administração do leite se dá por outras vias, como em copinhos e com o uso da sonda-gavagem,[15] para facilitar a sucção.
No meu caso, meu filho já estava com oito meses e igual idade de lactação. A probabilidade de haver um bebê com a mesma idade (ou idade corrigida, como chamam) era pequena, ou pelo menos eu pensava assim, já que o BLH normalmente atende a bebês prematuros e com necessidades especiais que estejam internados em um hospital. Quando entrei em contato pela primeira vez com Katia, perguntei se o meu leite serviria para algum bebê e se ainda era válido doar. Ela me respondeu que todo o leite doado era importante em qualquer idade e quantidade. Nessa primeira troca de mensagens, ela ainda agradeceu a minha vontade de ser doadora e me informou sobre todos os documentos e exames que necessitava enviar.
Seguindo a conversa, Katia me perguntou se eu tinha o teste rápido de Doenças Sexualmente Transmissíveis ainda na validade.[16] Esse teste é realizado por todas as mulheres grávidas, assistidas por algum serviço de saúde em pelo menos duas oportunidades: na primeira consulta ou primeira confirmação de gravidez e no último trimestre de gestação ou o mais próximo do nascimento ou logo após o parto. Como a validade do exame é de seis meses e eu tinha realizado o último um pouco antes de o meu filho nascer, teria que fazer outro para enviá-lo, mas Katia disse-me que assim que o motorista levasse o kit na minha casa com os frascos de vidro para extração de leite, já poderia ir armazenando. Esse kit continha quatro frascos de vidro de 500 mililitros (ml) esterilizados e embalados a vácuo pelos profissionais do laboratório, adesivos para anotar meu nome, o dia e a hora da primeira extração de leite e colar em cada envase. Toucas, máscaras e folhetos indicativos de higienização das mãos e das mamas, com o passo a passo da extração e como massagear as mamas para poder extrair melhor o leite estavam também entre os itens do kit.
Enviou-me por Whatsapp um formulário para preencher com meus dados cadastrais e outros dados decorrentes da gestação, que são: local da realização do pré-natal e número de consultas, peso no início e no final da gestação, data e local do parto e para pontar se havia alguma intercorrência no pré-natal ou durante a internação na maternidade. Com relação a minha saúde, perguntas se eu era saudável, se eu fumava, e se sim, mais ou menos que dez cigarros por dia ou se eu usava algum medicamento e indicar qual. Se eu ingeria frequentemente álcool ou alguma droga ilícita. Depois de preenchido, deveria anexar meu cartão de pré-natal e o cartão de vacinação do meu filho. Reforçou que em caso de suspeita de covid-19 ou outra enfermidade, ou se necessitasse tomar algum medicamento, que lhe avisasse.
Após preencher o cadastro e anexar documentos que eu possuía até aquele momento, faltava realizar o chamado teste rápido. Esse teste é chamado assim, pois o resultado fica pronto em poucos minutos. Para sua realização é necessário extrair uma pequena amostra de sangue obtida por punção venosa do dedo da paciente e depois levá-lo até uma fita absorvente que contém o reagente. Sendo assim, qualquer exame com esse caráter instantâneo pode ser chamado da mesma forma, porém entre os agentes de saúde era comum chamá-lo assim o exame realizado para a detecção das DST»s principalmente se se tratasse de uma mulher que estivesse visivelmente grávida, já que é um exame de praxe durante a gestação. Porém, no decorrer da pandemia de covid-19 e com a chegada de testes para a detecção do Coronavírus, o nome passou a ser usado também para essa verificação. Quando eu cheguei ao posto de saúde mais próximo a minha casa e pedi para fazer um teste rápido, pois já havia também me familiarizado com esse nome, me deparei com uma imensa fila de pessoas que estavam com suspeita de covid-19. Recuei da fila e decidi ir diretamente à recepção explicar que eu queria realizar um exame para atestar que não havia contraído nenhuma das DST»s analisadas, com a finalidade de doar leite. A recepcionista me levou a outra sala e então explicou à agente de saúde o que eu solicitava e as duas me parabenizaram pela «boa ação» de doar. Eu estava um pouco assustada, pois quase não saía de casa e ao ver tantas pessoas com suspeita de covid-19 próximas a mim, senti medo. Assim que saiu o resultado negativo para todas as enfermidades, enviei imediatamente uma foto para a Katia, que me agradeceu.
Agora eu já estava apta a realizar a doação. Do ponto de vista clínico e segundo as agentes de saúde, eu apresentava um bom estado de saúde, estava amamentando meu filho, não possuía nenhuma doença que impedisse à doação, não estava fumando e não fazia uso de nenhuma droga ilícita. Tinha realizado todas as consultas de pré-natal pelo SUS e nunca tive uma intercorrência nesse acompanhamento ou com o parto. Além disso, meu filho que também fazia o acompanhamento médico pelo SUS estava com seu cartão de vacinação completo. Algumas doenças que constam no manual (Brasil, 2008, p. 77), como HIV, HTLV 1 e 2 e sífilis, entre outras, impossibilitam a doação permanente ou pelo período de desenvolvimento da doença. Apesar de configurar como uma exceção existe a possibilidade de restrição da amamentação direta entre mãe e filho, como é o caso do HIV já mencionado acima.
Com todos os exames realizados e «papéis» enviados, antes de iniciar a ordenha e armazenamento do leite, foi necessário passar por uma etapa de estudo ou aprendizado para a extração de leite, que consistia em realizar uma massagem nas mamas anteriormente a cada tentativa de extração, conforme detalhada em cartilha enviada virtualmente. Para cada tentativa ou finalização de extração de leite, também era necessário realizar a esterilização do vidro que já vinha acoplado na bombinha de extração e da boca sugadora deste equipamento. Era necessário colar o adesivo do kit no frasco completando meu nome, a data da primeira coleta de leite e o horário. Para extrair o leite eu deveria me sentar num local tranquilo e evitar falar, mesmo estando de máscara que cobria a boca e o nariz e também deveria utilizar uma touca cobrindo todo o meu cabelo. Deveria apresentar a maior assepsia possível. Lavar bem as mãos antes de começar a extração e a massagem das mamas que deveriam ser lavadas somente com água, «pois o sabonete resseca os mamilos e os predispõe a fissuras» (Brasil, 2008, p. 95).
Eu estava ciente de todo esse conjunto de protocolos, regras e inscrições literárias que deveriam ser seguidas à risca, porém no dia a dia das extrações, sentia dificuldade em seguir algumas das etapas, o que me causava preocupação de que poderia impactar no tratamento e no recebimento do leite enviado para o BLH. Eu me cobrava constantemente sobre a necessidade de cumprir todos os protocolos de higiene, porém ao longo do tempo, fui realizando as adaptações conforme as minhas necessidades. Eu não conseguia realizar a esterilização do vidro captador de leite da bomba sugadora e sua boca de sucção a cada tentativa de extração, mas somente de uma a duas vezes por dia. Entretanto para não deixá-lo exposto ao ambiente eu o guardava na geladeira. A touca também era um item que eu não usava, mas sempre usava um elástico atando meu cabelo. Sentia-me incomodada porque tenho um volume de cabelo muito grande e não dava conta de prender todo o meu cabelo dentro da touca, além do calor extremo que eu sentia cobrindo toda a minha cabeça. Usava a máscara para cobrir a boca e o nariz, mas muitas vezes tinha que me mexer, falar com alguém ou pegar meu bebê no colo durante as extrações e seus intervalos. Escrevia sempre no diário que eu deveria higienizar mais vezes as mãos e sempre que me desviasse da atividade da extração lavá-las novamente, assim como descrita na cartilha que ensinava a «lavar as mãos e antebraços com água corrente e sabonete até os cotovelos. As unhas devem estar limpas e de preferência curtas» (Brasil, 2015).
Para a extração de leite, o Ministério da Saúde e seus profissionais recomendam utilizar a técnica de ordenha manual que consiste em realizar determinados movimentos e pressões nas mamas com a utilização apenas da mão da própria lactante ou de uma profissional de saúde, sem intervenção de outro aparato técnico para sua manipulação. Essa técnica se tornou popular «por meio de cursos, treinamentos e publicações sobre manejo da mama puerperal, na década de 80, coordenados por Vera Heloisa Pileggi Vinha» (Brasil, 2008, p. 94). O uso de bombas de sucção não é recomendado pelos laboratórios para a doação de leite, que afirmam que a ordenha manual é mais efetiva, mais econômica, «menos traumática e menos dolorosa» (Brasil, 2008, p. 92). E também que seu uso aumenta consideravelmente os riscos de contaminação tanto a partir das «partes do equipamento que entram em contato com o alimento» (Brasil, 2008, p. 94) quanto das superfícies que entram em contato com a mama da doadora, lactante. O risco mais comum era a de se produzir uma proliferação bacteriana que pudesse levar à contaminação do leite doado. Outra preocupação da doadora deve orbitar na relação com ambiente onde se realiza a ordenha, com a prescrição de se evitar locais como banheiros ou onde há a convivência com animais domésticos.
O tempo de início da coleta pode variar bastante de mulher para mulher e as recomendações abrangem muitas práticas e técnicas para facilitar a liberação do reflexo da ocitocina - hormônio responsável pela ejeção do leite[17]- que passam por massagens nas costas da nutriz, escuta ativa e estímulo à «mãe a expressar seus sentimentos» (Brasil, 2008, p. 94), passa pelas descrições da postura adequada, ambiente tranquilo e sem interrupções, orientações de meditações e pensamentos positivos.
Como dito acima, eu fazia uso da bomba de extração e tinha tanto a elétrica, ou seja, a que fazia a sucção automática, quanto a que eu tinha que ficar apertando para sugar. Katia estava ciente quanto ao uso das mesmas, porém sempre me alertava para a esterilização a cada extração. Por vezes alternava o uso das bombas para a extração, para testar qual sairia melhor. Com a elétrica eu tinha que ficar num mesmo lugar, parada por conta do fio conectado à energia e ainda tinha o problema do ruído que atrapalhava as sonecas do meu filho. Já a manual me dava mais mobilidade, apesar da concentração que tinha que ter para apertar constantemente a alavanca de extração. Por uma semana também testei ordenhar com minha mão somente, mas o leite não saía por todas as questões da idade de lactação já explicitadas.
Quando obtinha sucesso na saída do leite com algum dos equipamentos extratores e estava por abrir um envase novo, colava nele o adesivo previamente preenchido com meu nome completo, o dia e horário dessa primeira extração. Recebi a orientação de inserir os dados imediatamente após a primeira coleta e não confiar em deixar para anotar posteriormente, pois poderia esquecer. Sem o registro, o leite não pode ser aceito. Após verter o líquido do envase da bombinha para o frasco fornecido pelo BLH, eu fechava a tampa de rosca e o colocava no congelador. O leite tanto no domicílio da doadora quanto no BLH é armazenado em uma cadeia de frio dentro do congelador e só deixa de estar em baixas temperaturas, quando está passando por processos de tratamentos térmicos em laboratório, para logo então voltar para o freezer nas etapas intermediárias. Como cita Lira (2002) o congelamento tanto do leite cru quanto do pasteurizado não altera a sua qualidade. As baixas temperaturas retardam «a ocorrência de reações enzimáticas e químicas indesejáveis» (Brasil, 2008, p. 105) e inibem a multiplicação da proliferação dos microrganismos que se encontram presentes no leite.
O leite armazenado no congelador tem a validade máxima de 15 dias para o consumo. Katia entra em contato por mensagem uma vez por semana para saber se tenho leite estocado para doar, e caso eu tenha, ela agenda a retirada pelo motorista que já tem uma rota pré-determinada para percorrer a cada dia da semana. Katia sempre pergunta se me sinto bem, se tive alguma intercorrência de saúde. Na maioria das vezes eu não tinha leite para oferecer, pois sentia dificuldade em extrair uma quantidade considerada mínima por mim. Às vezes até já tinha extraído alguma quantidade, mas se fosse perto do dia que ela entrava em contato e considerando a validade do leite, eu esperava juntar para outra semana. Minha dificuldade se dava porque em partes parei de estocar leite após a primeira tentativa frustrada de doação e então meu sistema de produção já havia se regulado para atender somente as necessidades do meu bebê, sem excedentes. E por outro lado o meu filho estava numa fase de se movimentar muito e eu tinha que estar mais alerta para seguir seus movimentos dificultando o tempo de sentar para realizar as extrações tranquilamente. Quando se realiza uma doação e o leite é coletado por um agente do BLH, o fluido entra no sistema interno do laboratório e passa pela etapa de controle de qualidade com a checagem da embalagem, conferindo se está padronizada, se o rótulo está preenchido de forma correta e dentro das condições higiênico-sanitárias seguindo todos os protocolos em vigor e se persiste o estado de congelamento do leite com a finalidade de «garantir a preservação de seu estado biológico» (Brasil, 2008, p. 98).
Presenciei a recepção do leite, durante uma visita a um BLH, do qual a doadora levava diretamente seu envase para o local, pois se tratava de um caso de doação (exclusiva) para seu filho que estava internado naquela maternidade. Ela entrega seu envase na recepção acondicionado dentro de um saco plástico e a mulher que a atende questiona de qual localidade ela vem e quanto tempo antes ela realizou essa extração. A mulher responde que tinha extraído entre o dia anterior e o dia presente, que o acondicionou na geladeira e no momento de sair, colocou-o em uma sacola e foi até o BLH de ônibus, numa viagem de mais de uma hora para entregar e visitar seu filho na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do mesmo hospital. A recepcionista explica que ela não poderia ter deixado tanto tempo sem um acondicionamento ideal e pergunta se ela tem congelador em casa. Ela faz que sim com a cabeça e diz que não lhe deram nenhuma orientação. A recepcionista então diz que vai explicar todos os detalhes e ainda deixará um folheto com ela. Diz como deve rotular e acondicionar o leite no freezer de casa após a extração e que durante a viagem os frascos têm que vir acondicionados em um isopor com bastante gelo e se possível, gelo seco ou gelo em bolsas, que ela pode fazer em casa. A recepcionista avisa que dessa vez aceitará esse frasco, encaminhando-o para a sala de acondicionamento e tratamento para analisar se está em condições de consumo. No momento em que estou aguardando a pessoa que me atenderia no BLH e presencio a cena acima citada, chega um casal com um bebê no colo pedindo ajuda à recepcionista com a «pega»[18] correta na amamentação. Eles são encaminhados para uma sala de ordenha onde uma enfermeira os atende para orientá-los.
Toda a parte da infraestrutura física dos BLH»s deve seguir à risca as orientações do manual e das normas técnicas tanto quanto ao tamanho mínimo de definição de cada espaço, quanto de cada material e equipamento utilizar. A arquitetura bem como a iluminação, a pintura e as superfícies são estritamente definidas. A distribuição dos equipamentos também deve seguir um parâmetro definido e todos estão classificados no Manual da Anvisa (Brasil, 2008). As composições das salas, divisórias e os profissionais que devem aceder a elas, toda a forma e os materiais de limpeza, assim como os treinamentos de pessoal e suas vestimentas estão definidas previamente em normas regulamentadas pelos órgãos oficiais de gerenciamento do BLH. Todos os requisitos mínimos de gestão, eficiência, uso do espaço e definição dos servidores habilitados podem ser encontrados nas normas já citadas.
Todos os equipamentos bem como sua limpeza, manejo e profissionais habilitados a manipulá-los estão descritos no manual de funcionamento do BLH. Os equipamentos variam desde uma geladeira exclusiva para o armazenamento do leite humano bem como uma para guardar os meios de cultura e reagentes. Passam por todo o mobiliário das salas de recepção, ordenha e tratamento do leite em todas as suas etapas, como armários, cadeiras, sofás, bancadas e seus revestimentos até a descrição de materiais como lixeira para o banheiro, dispensador de sabonete líquido, porta papel-toalha e pias para a higienização das mãos. Equipamentos como o banho-maria para pasteurização bem como para o degelo, pipetador automático, tubos esterilizados, termômetros, assim como os materiais de paramentação dos profissionais como luvas, gorros, máscaras e aventais, envases, adesivos e materiais de escritórios e arquivos com o cadastro e documentação das doadoras estão catalogados nos manuais. E todos os equipamentos e instrumentos «devem estar regularizados junto à Anvisa e o Ministério da Saúde e de acordo com a legislação vigente».
A composição da equipe de um Banco de Leite Humano pode variar dependendo das atividades desenvolvidas, mas dentro de uma ampla gama de profissionais da saúde é comum que um BLH conte com enfermeiros, farmacêuticos, biólogos, biomédicos nutricionistas, médicos, engenheiro de alimentos, psicólogos, assistentes sociais, auxiliares técnicos e de limpeza, dentre outros. O controle de higiene, conduta de saúde da doadora e segurança fazem parte de um conjunto de medidas que devem ser tomadas em prol de redução de riscos operacionais e de contaminação secundária culminando com um resultado final seguro. Para sua adoção, os servidores devem receber treinamentos e informações constantemente acerca de suas condutas e das práticas diárias em laboratório.
Como vimos até aqui, os processos que se sucedem entre a doação e a distribuição do leite humano acontecem tanto internamente quanto externamente ao espaço físico do laboratório, como por exemplo, em domicílio das doadoras e no transporte do leite. As etapas descritas a seguir, portanto, carregam o peso da «laboratorialização» ou da aplicação do maior conhecimento tecnológico ou científico dentro de um BLH. O considero como o «coração» das transformações físicas, bioquímicas e sociais, pelo valor que os biomédicos dão a elas, pois determinam a «potabilidade» do fluido a partir de protocolos de análises, seleção e percepções que validam a sua distribuição. Primeiro se acionam os dispositivos sensoriais, visuais e olfativos para a verificação da qualidade do leite recepcionado em laboratório, bem como a checagem e rastreamento documental e de práticas produzidas pelas doadoras.
São elas: Seleção, Classificação, Pasteurização e Controle de Qualidade. O processo de Seleção compreende as etapas de checagem das condições da embalagem já citadas anteriormente, a presença de sujidade detectadas a partir de técnicas de cor, off-flavor e acidez Dornic (Galhardo et al., 2002). Cada etapa é composta por suas descrições, classificações, técnicas de verificação, manejo dos equipamentos e utensílios e registros em planilhas. Para a verificação da cor existe uma tabela que classifica colorações possíveis e que passam pelas cores branca e amarelada, classificadas como colorações normais, até a vermelha e verde-escura, classificadas como anormais. Ao lado da descrição da cor existe uma explicação para as causas da pigmentação, e suas respectivas causas que passam tanto pela dispersão de luz quanto pela presença de determinadas bactérias ou decorrentes da alimentação da doadora. No caso das colorações anormais, o descarte do leite deve ser realizado imediatamente.
Após essa seleção, é necessário seguir com o circuito sensível do profissional de saúde, agora aguçando o seu sentido olfativo. A avaliação off-flavor detecta o aroma «não-conforme» do leite humano, ou seja, fareja possíveis cheiros que podem representar o descarte dessa substância. Existem duas tabelas para se guiar quanto à classificação dos odores. A primeira diz respeito à percepção dom cheiro e seu significado, conforme a tabela 1. A segunda explica o tratamento a ser realizado a partir da detecção da presença de determinados odores. Para que a técnica seja realizada com o melhor desempenho possível, é necessário que se evite fumar, comer, beber 30 minutos antes da determinação bem como evitar a utilização de cosméticos e perfumes para que não se tenha uma fadiga olfativa impeditiva de se concentrar em uma melhor avaliação possível.[19] Consecutivamente a técnica de off-flavor e de coloração e a qualquer tempo prévio à pasteurização do leite, deve-se verificar a presença de sujidades no Leite Humano Ordenhado Cru (LHOC). Entende-se como sujidade a presença de qualquer corpo estranho como, por exemplo, fragmentos de unhas, insetos ou pelos, pedaços de vidro ou de papel. Sempre se adverte estar visualmente atento a essa presença em todos os envases que chegaram até esta etapa.
Tabela 1: Determinação off-flavor
Fonte: retirada do manual da Anvisa (Brasil, 2008, p. 108)
Descritos os processos de off-flavor e sujidades, passamos para a determinação de acidez Dornic.[20] A partir de testes microbiológicos, é possível definir um valor de acidez, que não deve superar a 4 graus Dornic. Caso atinja o resultado de acidez com oito graus Dornic, o leite é desclassificado para o consumo, já que «as bactérias fermentam a lactose do leite humano, produzindo ácido láctico»[21] (Brasil, 2008, p. 121). Para a detecção da acidez é necessário utilizar-se de instrumentos como as pipetas, microburetas, agitadores vórtex e todo o tipo de aparato característico do senso comum de laboratório, além dos reagentes e suas soluções para a realização dos testes. Passada a etapa de detecção de acidez, vem a técnica do crematócrito, em que se calcula o conteúdo energético do leite cru e o classifica quanto aos seus constituintes antes da pasteurização, que será a etapa subsequente. Para todas essas etapas, é necessário proceder imediatamente à realização dos testes, o registro que normalmente é firmado por um técnico laboratorial responsável.
A técnica da pasteurização do leite humano em laboratório consiste em aquecê-lo em banho-maria a uma temperatura de 62,5 graus célsius por 30 minutos, devendo ser agitado a cada 5 minutos sem retirá-lo do equipamento. Os bancos de leite normalmente contam com um equipamento específico para realizar tal procedimento e deve-se observar a recomendação de cada fabricante e seguir uma rotina de cuidados e manutenções periódicas de checagens, limpezas e testes para assegurar-se de que está em pleno funcionamento. Essa técnica de tratamento térmico, que já era amplamente conhecida da indústria alimentícia pela eficiência no combate a microorganismos patógenos, surgiu nos BLH»s como uma forma de garantir que o leite humano doado fosse consumido por bebês prematuros sem que eles corressem o risco de serem infectados pela contaminação de vírus e bactérias nocivas (Affumicato, 2016, p. 15). Surgiu como uma alternativa eficaz que aliava baixo custo a uma alta eficiência no tratamento do leite humano e sua potabilidade para o consumo. O resultado ótimo pode ser observado uma vez que o «binômio temperatura de inativação e tempo de exposição» é «capaz de inativar esse microrganismo» sabendo-se então que os demais patógenos «estarão termicamente inativados» (Brasil, 2008, p. 134). O LHOC se transforma em leite humano ordenhado pasteurizado e passa pelo resfriamento no congelador, completando o tratamento térmico dessa etapa. Posteriormente são retiradas pequenas amostras de cada frasco para a realização de um controle de qualidade que detectam basicamente a presença ou ausência de coliformes e definem se o fluido está próprio ou impróprio para o consumo. Estando próprio, resta somente a etapa de distribuição final do leite humano pasteurizado e sua administração a um receptor qualificado para esse recebimento.
O passo de leite materno a leite humano
Para que uma doação seja concretizada, uma série de procedimentos, conhecimentos, valores e aparatos precisaram interagir através de uma rede técnica. Aqui entendo a extrapolação da noção de técnica latouriana, que à diferença do senso comum, estende sua condição «onde quer que possamos encontrar resistência e heterogeneidade dos componentes de um determinado agregado que nos provoque a dobrar e diferenciar» (Queiroz e Melo & Moraes, 2016, p. 291). Explicando em outras palavras, e seguindo o raciocínio de Latour e Simondon (debatidos em Queiroz e Melo & Moraes, 2016), a combinação entre os processos de metamorfose e reprodução do leite doado para um BLH - convertidos em produto para um público específico- deve ser vista como a continuidade de seus elementos e interações, capazes de «assumir outras novas e várias configurações» (p. 290) passíveis de serem rastreadas, associadas num momento, desassociadas em outro. Em suma, «os elementos se emprestam, se agenciam, se misturam, se potencializam, mas podem também se dispersam como ocorreria com qualquer outro grupo de elementos» (p. 290). No caso do BLH, essa nova forma de existência sofre uma transformação ou transmutação que converte o leite doado em uma substância cientificamente purificada, estatalmente controlada, moralmente aceita e juridicamente despersonalizada.
Para o que o leite consiga passar pela transformação de leite materno doado a leite humano produzido pelo laboratório, é necessário pensar que alguns processos de reificação foram realizados e mostrar seus desdobramentos aqui. Primeiro devemos analisar a gramática biomédica utilizada para classificar o fluido, já que apesar de tanto o
termo leite materno como leite humano digam (diz) respeito à dimensão de produto – que pode ser visto como mais ou menos desacoplado do corpo, dependendo do contexto– ambos não são exatamente sinônimos, já que leite materno pressupõe uma relação entre mãe (que o produz) e filho/a (que o consome), inexistente em leite humano (Nucci & Alzuguir, 2023, p. 26).
As análises das produções científicas pressupõem também a transformação laboratorial de uma matéria prima - leite materno doado ainda não apto ao consumo- a um produto manufaturado - leite humano pasteurizado e apto ao consumo. E para isso, devemos pensar que esse fluido produzido laboratorialmente dentro do BLH, despersonaliza e descentraliza o papel feminino da produção do leite. Seguindo a teoria nativa biomédica a doadora e o leite doado se configuram como potencial extensão técnica no todo da maquinária estatal e laboratorial. O leite inicialmente materno ou produto da relação entre uma mãe e seu bebê, se converte em um produto puro, purificado, transformado e controlado laboratorialmente a partir de operações tecnocientíficas e burocráticas, funcionando como um aparato do Estado que codifica, universaliza e humaniza o leite doado.
Este fluido não passa somente por tratamentos, análises e controles laboratoriais para preservar as boas características microbiológicas e excluir as que são configuradas como agentes patógenos, mas também pelo controle e exclusão de vínculos afetivos, imputando seus valores de pureza e moralidade. Com isso, acredito demonstrar que toda a aparatarem, a construção de um corpus escrito e científico, um modus operandi de protocolos, a criação de leis, resoluções e manuais, englobam uma orientação política, de gênero e de classe onde todas as práticas, adoções, ausências e omissões contém em si um pressuposto político que aqui estão sendo tensionados.
Concluo que dentro desse tensionamento, o controle laboratorial desempenha um papel de «disciplinarização» dos corpos femininos, pois todo o processo de doação é envolto a uma série de procedimentos, regulamentos e adequações higiênicas que podem restringir a mulher a um domínio doméstico e de vigilância, já que é necessário amamentar em um ambiente tranquilo; para proceder à doação deve-se atentar ao ambiente do qual está realizando a extração; passa por vigias dos cuidados de si que se desdobram também aos cuidados com o seu filho e o ambiente onde ela vive. Passa por suas práticas de assepsia dispensadas também ao seu bebê e ao seu lar. Sendo assim, a mulher que se torna doadora, em certa parte limita-se ao espaço doméstico onde ocorre a «laboratoralização» da casa (sensu Sá, 2006), que se torna uma extensão do laboratório do BLH, justificando-se a constante vigilância ao domicílio e ao seu maternar.
Dentro da cadeia técnica laboratorial, existe uma disputa entre o corpo feminino e as tensões médicas e biomédicas acerca da construção do corpo da mulher e do bebê. O leite que sai do seio de uma mulher e que amamenta seu bebê, do ponto de vista laboratorial, é somente um leite materno, uma matéria-prima, indecifrável, codificado, que serve a um objetivo muito específico, ao passo que quando ele é doado e passa por todos os controles técnico-burocráticos e de rastreamento, ele se transforma num leite humano decodificado, tratado e apto para ser consumido por qualquer ser humano, decodificado e tratado. Ou seja, há aqui uma noção de humanidade em que o controle, higiene e protocolos sistematizados dentro de um conjunto de documentos, ou corpus editorial são necessários para purificar esse leite.
A qualidade do leite é medida a partir de tratamentos químicos, morais e sociais em que no contexto do laboratório de Banco de Leite Humano gera um produto baseado em supostos científicos, eurocentrados, brancos e masculinos de humanidade. Para concluir, o que procuro demonstrar neste artigo, é que o tensionamento aqui trabalhado se reverbera entre leite «materno» que se configura como a extensão do corpo de uma mulher por um lado e o leite humano que se afirma como extensão do corpo do laboratório, por outro. Sendo assim, não podemos tratar o leite doado para o BLH como uma mera substância, um fluído, líquido, alimento, mas sim como um produto laboratorial em que técnicas são utilizadas para limpar, purificar, mas em última instância, condicionar e fabricar corpos com uma orientação política, social, de gênero e de parentalidade pré-estabelecidas politicamente.
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Rede Global de Bancos de Leite Humano-Brasil. (s.d.b). Normas técnicas e manuais. Rio de Janeiro https://rblh.fiocruz.br/normas-tecnicas-e-manuais
Rohden, F., & Alzuguir, F. (2016). Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos: a promoção das descobertas científicas em torno da ocitocina. Cadernos Pagu, (48), e164802.
Sá, G. J. da S. (2006). No mesmo galho: ciência, natureza e cultura nas relações entre primatólogos e primatas. (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Süssekind, F. (2010). O Rastro da Onça: Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul (Tese de Doutorado, Museu Nacional; Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Contribuições dos autores (CRediT): 1. Conceituação; 2. Curadoria de dados; 3. Análise formal; 4. Aquisição de financiamento; 5. Investigação; 6. Metodologia; 7. Administração de projetos; 8. Recursos; 9. Programas de computador; 10. Supervisão; 11. Validação; 12. Visualização; 13. Escrita: rascunho original; 14. Escrita: revisão y edição. C. V. C. contribuiu em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14.
Editado por: O comitê editorial executivo Juan Scuro, Pilar Uriarte, Victoria Evia e Martina García aprovaram este artigo.
Nota: O conjunto de dados nos quais se baseiam os resultados do estudo não está disponível.
[1] Deixo registrado aqui que, ante todas as incertezas, temores, informações e desinformações propagadas durante esse começo de pandemia, que eu possuía o privilégio de me manter, em grande parte, protegida da disseminação do covid-19, por não necessitar transitar diariamente nas ruas e ter contatos prolongados com outras pessoas fora de meu círculo íntimo de convivência. Não precisei encarar uma jornada de trabalho fora de casa nem me expor a atividades laborais «precarizadas» como tantas outras mulheres e homens que não tiveram possibilidade de escolha e vivenciaram a pandemia e a exposição ao vírus de maneira desigual ocasionando maiores danos a sua saúde.
[2] Termo designado para se referir a um período de reclusão de contatos sociais durante o período de incubação de um vírus, para impedir sua circulação e transmissão. No caso da condição de puérpera, a quarentena significa o período de recuperação, o chamado resguardo, do pós-parto tanto física, hormonal como emocionalmente.
[3] Segundo o Manual da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil, 2008) uma das competências dos postos de saúde é promover a divulgação do serviço de doação e promoção a amamentação.
[4] Para se aprofundar no processo de mercantilização das amas de leite escravizadas bem como na história do surgimento e transformações de paradigmas sofridas pelo BLH, ver Correia (2025).
[5] Optei por não identificar os BLH»s, já que não se faz necessário para o entendimento do debate antropológico.
[6] A responsável pelo BLH me informou por telefone que os frascos eram comprados pela prefeitura e enviados ao banco e de lá passavam pelo processo de esterilização antes de serem entregues às doadoras. A quantidade que eles tinham até o momento não era suficiente para atender novas doadoras, pois todos os recursos materiais e humanos na área da saúde foram desviados para atender as demandas emergenciais da pandemia.
[7] Este artigo é derivado de minha dissertação apresentada em abril de 2025.
[8] Whatsapp é um aplicativo de trocas de mensagens escritas, por áudio e vídeos que pode ser instalado em celulares smartphones ou computadores.
[9]Termo cunhado pelo filósofo Paul Rabinow em 1992 com o objetivo de «identificar as transformações que incidem sobre a ação e as formas de organização contemporâneas» (Basques, 2007) que recaem sobre as relações que englobam a técnica, a sociedade e a ciência. Para uma leitura mais aprofundada, ver Rabinow (1999).
[10] Nome fictício para resguardar a privacidade da interlocutora.
[11] De acordo com o Guia alimentar para a população brasileira (versão guia de bolso) (Brasil, 2014, p. 8), alimentos ultraprocessados «são formulações industriais à base de ingredientes extraídos ou derivados de alimentos ou, ainda, sintetizados em laboratório (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor, etc.).
[12]Latour (2020) retratou o negacionismo como uma desconexão de fenômenos que são os sintomas de uma mesma situação histórica, aqui, focado no problema climático e na negação de sua existência. Podemos aplicar ao caso do covid-19 no que se refere à negação de um conjunto de medidas orientadas a reduzir ou prevenir seus efeitos, mas que foram negadas, silenciadas e diminuídas por um grupo de pessoas que não possui interesse na divulgação de proposições orientadas por conhecedores das políticas de saúde coletiva e pela comunidade científica.
[13] O Instagram é uma rede social, que se acessa a partir de dispositivos eletrônicos, e que se permite compartilhar imagens, vídeos e interagir com outras pessoas que publicam o seu conteúdo virtual na plataforma.
[14] Neste caso é possível o leite doado pela mãe exclusivamente para seu bebe, não passe pelo processo de pasteurização, sendo distribuído após o controle das outras etapas prévias e posteriores a ela.
[15] Sonda-gavagem é um método de alimentação realizada a partir de um tubo gastrointestinal, inserido na boca ou nariz ou diretamente da boca ou intestino.
[16] Segundo o manual da Anvisa (Brasil, 2008) é necessário realizar exames (hemograma completo, VDRL, anti-HIV e demais sorologias usualmente realizadas durante o pré-natal) quando o cartão de pré-natal não estiver disponível ou quando a nutriz não tiver feito o pré-natal.
[17] Rohden e Alzuguir (2016) discutem como a «celebrização da ocitocina como componente central de uma bioquímica do amor se inscreve dentro do processo mais amplo de fabricação de dois corpos hormonais distintos e complementares a serviço da reprodução» (p. 1).
[18] Nome popular para designar a forma correta de o bebê abocanhar o seio materno para sugar corretamente o leite.
[19] Latour (2005) descreve um processo de construção de olfato (que o autor descreve como «narizes») que ocorre nos treinamentos de pessoas que querem se inserir no mercado de perfumes na França e que se relaciona com o treinamento deste sentido também no BLH.
[20] Técnica caracterizada como a métrica equivalente ao quantitativo da presença de solução de hidróxido de sódio 0,1 N, no leite humano ordenhado (LHO).
[21] Através da construção da trajetória do cientista Pasteur e da «descoberta» do ácido láctico, Latour (2004) delinea como a ciência é construída e configurada a partir tanto de uma relação entre Pasteur e o ácido láctico quanto da conjuntura social, histórica e situada da produção de uma teoria.