DOI: 10.29112/ruae.v10i2.2595

Dossier

Amamentação nas fotoperformances contemporâneas e um breve panorama da história da arte ocidental: deusas, santas e mulheres

La lactancia materna en las performances fotográficas contemporáneas y un breve recorrido por la historia del arte occidental: diosas, santas y mujeres

Breastfeeding in contemporary photoperformances and a brief overview of the history of Western art: goddesses, saints and women

Elisa Elsie Costa Batista da Silva Beserra1 ORCID: 0000-0001-9608-4365

Ana Paula Sabiá2 ORCID: 0000-0003-1640-5320

Maria Ângela Pavan3 ORCID: 0000-0003-2097-0680

1 Artista visual, doutoranda (com estágio de investigadora visitante na Universidad Complutense de Madrid, Espanha) e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professora substituta no Departamento de Comunicação Social da UFRN. elisa.elsie@ufrn.br.

2 Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais (Universidade do Estado de Santa Catarina), mestra em Psicologia Social (Universidade Federal de Santa Catarina) e licenciada em Artes Plásticas (Fundação Armando Alvares Penteado). anasabia.as@gmail.com.

3 Professora do departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. gelpavan@gmail.com

Resumo

O artigo investiga como artistas visuais contemporâneas mães utilizam a fotografia a fim de tensionarem o regime de representação dominante sobre a figura do corpo que amamenta. Através de uma abordagem etnográfica pós-moderna, as autoras discutem como a amamentação foi simbolicamente apropriada por discursos patriarcais, muitas vezes esvaziando a experiência da mulher lactante de sua agência e subjetividade, podendo tornar-se também uma opressão física e social. São analisadas obras das artistas contemporâneas Roberta Barros, Ana Casas Broda, Catherine Opie, Renee Cox, Malu Teodoro, Elisa Elsie, Tainã Mello & Tarsila Alves que utilizam a autorrepresentação fotográfica como linguagem. Essas artistas elaboram cenas em que o corpo-mãe torna-se campo de enunciação estética e política, rompendo com estereótipos de pureza, passividade e sacrifício. A leitura crítica das imagens é feita levando-se em consideração a história, contexto cultural, significados simbólicos e subjetividades. Antes de entrar na performance e na fotografia, as autoras trazem um breve recorte na história da arte ocidental com imagens idealizadas de deusas, santas e símbolos mitológicos a fim de contextualizar e introduzir as figuras lactantes. Propõe-se que está em curso a construção de novo repertório visual para o corpo nutriz, que permite reimaginar a maternidade a partir da experiência vivida e performada pelas próprias mulheres artistas na contemporaneidade em suas produções pessoais fotográficas. As obras (esculturas, pinturas, performance e fotografias) conduzem a escrita ao revelarem figuras que amamentam ao longo de diversos períodos históricos.

Palavras-chave: fotografia contemporânea, feminismos, história da arte, maternidade, amamentação.

Resumen

Este artículo investiga cómo artistas visuales contemporáneos madres utilizan la fotografía para desafiar el régimen representacional dominante en torno al cuerpo lactante. A través de un enfoque etnográfico posmoderno, las autoras discuten cómo la lactancia materna ha sido apropiada simbólicamente por los discursos patriarcales, a menudo despojando a la mujer lactante de su capacidad de acción y subjetividad, convirtiéndose potencialmente en una forma de opresión física y social. Las autoras analizan obras de artistas contemporáneas como Roberta Barros, Ana Casas Broda, Catherine Opie, Renee Cox, Malu Teodoro, Elisa Elsie, Tainã Mello y Tarsila Alves, quienes utilizan la autorrepresentación fotográfica como lenguaje. Estas artistas crean escenas en las que el cuerpo materno se convierte en un campo de enunciación estética y política, rompiendo con los estereotipos de pureza, pasividad y sacrificio. Una lectura crítica de las imágenes considera su historia, contexto cultural, significados simbólicos y subjetividades. Antes de profundizar en la performance y la fotografía, las autoras ofrecen un breve repaso de la historia del arte occidental, incluyendo imágenes idealizadas de diosas, santas y símbolos mitológicos, para contextualizar y presentar figuras lactantes. Proponen que se está gestando un nuevo repertorio visual para el cuerpo lactante, que permite una reimaginación de la maternidad basada en la experiencia vivida y escénica de las propias artistas contemporáneas en sus producciones fotográficas personales. Las obras (esculturas, pinturas, performances y fotografías) guían la escritura al revelar figuras que amamantan a lo largo de diversos períodos históricos.

Palabras clave: fotografia contemporánea, feminismos, historia del arte, maternidad, lactancia materna.

Abstract

This article investigates how contemporary visual artists who are mothers use photography to challenge the dominant representational regime surrounding the breastfeeding body. Using a postmodern ethnographic approach, the authors discuss how breastfeeding has been symbolically appropriated by patriarchal discourses, often stripping the breastfeeding woman of her agency and subjectivity, potentially becoming a form of physical and social oppression. The work of contemporary artists Roberta Barros, Ana Casas Broda, Catherine Opie, Renee Cox, Malu Teodoro, Elisa Elsie, Tainã Mello, and Tarsila Alves, who use photographic self-representation as a language, is analyzed. These artists create scenes in which the maternal body becomes a field of aesthetic and political enunciation, breaking with stereotypes of purity, passivity, and sacrifice. A critical reading of the images takes into account their history, cultural context, symbolic meanings, and subjectivities. Before delving into performance and photography, the authors offer a brief overview of Western art history, including idealized images of goddesses, saints, and mythological symbols, to contextualize and introduce lactating figures. They propose that a new visual repertoire for the nursing body is underway, allowing for a reimagining of motherhood based on the lived and performed experience of contemporary women artists themselves in their personal photographic productions. The works (sculptures, paintings, performances, and photographs) guide the writing by revealing figures who breastfeed throughout various historical periods.

Keywords: contemporary photography, feminisms, art history, motherhood, breastfeeding.

Recebido: 03/06/2025

Aceito: 17/09/2025

Introdução

Começamos este texto pensando na possibilidade das palavras mulher e amamentação terem caminhado juntas na história ocidental e latino-americana (esse último território das três autoras) desde a primeira mulher e o primeiro nascimento. Partimos desta ideia fabulatória ao pensar na condição biológica do corpo humano de produzir leite em determinados contextos, como no pós-parto, mas de maneira alguma reduzimos o corpo somente a esta função. Peitos e litros de leite (humano ou não) foram e são necessários para alimentar a humanidade. Diante da fartura de seios e fluidos, propomos neste artigo um breve recorrido e recorte da história da arte ocidental até os dias atuais, com um cuidado em relação à fotografia contemporânea. A escolha de artistas e obras é resultado das nossas pesquisas acadêmicas, nas quais buscamos observar e compreender as representações da mulher lactante.

Fizemos buscas simples utilizando o Google imagens[1] digitando a palavra amamentação em uma tentativa de visualizar as possibilidades. Embora conscientes das limitações da ferramenta, nos interessava saber o que iríamos encontrar na plataforma considerada o maior buscador do mundo (Matsumoto, 2024). Recebemos como resposta uma tela de rolagem (Figura 1) com centenas, milhares, de fotografias com poucas variações: mulheres vestidas, amamentando com seios parcial ou completamente cobertos, iluminação difusa, roupas de tons claros e sorrisos serenos.

Figura 1: Busca no Google imagens digitando a palavra mulher amamentando. 2025

Fonte: google.com

As mulheres das imagens, em sua maioria fotografias e desenhos, durante o ato de aleitar encontram-se em posições similares, com elementos repetidos, distantes das opções artísticas que iremos apresentar a seguir de tetas pujantes que saem das roupas ou estão livres. No buscador predominam cenários associados a momentos de harmonia, calma e de certa maneira pudor, ao tornarem inacessível a visão do peito que alimenta. O aleitamento humano está vinculado a diferentes sentimentos e ambientes que normalmente contrariam as imagens disponíveis nas buscas on-line.[2]

Neste artigo, apresentaremos brevemente figuras de mulheres lactantes na arte ocidental, passando por pinturas, esculturas e performance, para em seguida trazer análises de fotografias e fotoperformances. Esse último conjunto de imagens é um pequeno compilado de artistas feito ao longo dos últimos anos através de pesquisas em livros, artigos, exposições, internet e grupos de estudos maternos. Os regimes visuais da fotografia na antropologia contemporânea figuram representações passíveis de interpretações poéticas e polissêmicas. No intuito de compreendê-los, mobilizamos a etnografia pós-moderna (Fortin & Gosselin, 2014) como estratégia metodológica na qual é possível acolher a ficção e as experiências individuais subjetivas para analisar obras, mantendo a credibilidade e o rigor da pesquisa. Pensando essa escrita como «um lugar de incorporação de conhecimento sensível, bem como conhecimento teórico, além de um lugar de integração tanto de emoção, quanto de cognição» (Fortin & Gosselin, 2014, p. 13).

As práticas analíticas de natureza criativa favorecem releituras constantes do texto, instaurando um processo reflexivo que acompanha o próprio gesto de escrever. Esse movimento exige revisões contínuas das escolhas — individuais e coletivas — a partir das informações colhidas e da observação atenta aos padrões visuais das obras. A pesquisa nos fez retornar algumas vezes aos sites pessoais das artistas, anotações de exposições e textos nos quais havia menções às obras. Para a escrita e apreciação crítica das obras, levamos em consideração a história, o contexto cultural e os significados simbólicos.

O envolvimento das autoras no campo das imagens contemporâneas ocidentais que dialogam com a amamentação possui pouco mais de dez anos e são pesquisas que seguem em curso. Esse repertório imagético auxilia na investigação de quem são essas artistas, em que contextos produzem e quais intenções das obras. Pensar a etnografia como a teoria em ação nos leva a empiria etnográfica defendida por Mariza Peirano (2014, p. 380), que ao acolher «eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo que nos afeta os sentidos», reconhece que esse «é o material que analisamos e que, para nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos, fonte de renovação». Para nós, a temática da maternidade e seus desdobramentos influenciam nossos sentidos que estão em constante transformação.

Aproximamo-nos também do pensamento de Massimo Canevacci (2009), para quem esta prática metodológica está intrinsecamente vinculada à observação participante. Segundo o autor, «olhar é um treino que a etnografia desenvolve profundamente», sendo o olhar sempre «culturalmente determinado» (Canevacci, 2009, p. 14). Diante dessa premissa, considerando também uma pesquisa em que o olhar cuidadoso assume papel central, torna-se necessário aprender, exercitar, reinventar e expandir continuamente as formas de ver. Trata-se de adotar uma postura de reflexividade perceptiva, que se desenvolve tanto no contato com as obras quanto no próprio gesto de escrita. À luz dos procedimentos apresentados, passamos a observar e analisar obras ocidentais na tentativa de esboçar uma negociação simbólica para a construção de novos repertórios visuais sobre a amamentação na contemporaneidade, mediados, na última parte do artigo, pela performance de si.

Antes de prosseguir, demarcamos a importância dos estudos na área da fotografia fundamentarem parte da escrita por serem um ponto de convergência de interesse das autoras. Teóricas como Tina Campt (2017) e Susan Sontag (2004), além dos escritores Adolfo Montejo Navas (2017) e Roland Barthes (1984) provocaram a observação e o entendimento das fotografias. A articulação entre escrita e conceitos fotográficos será feita mais para frente, no desenvolvimento do artigo.

1. Peitos, pinturas, esculturas e história da arte

As representações da amamentação na arte ocidental tanto é milenar quanto corriqueira em muitas culturas. Decidimos trabalhar com este recorte histórico pela proximidade com as pesquisas que desenvolvemos nos últimos anos e que de certa maneira permeiam parte da cultura latino-americana sob influência cristã na qual estamos inseridas. Tais representações estão permeadas de riquezas e minúcias em seus simbolismos e intencionalidades, as imagens de deusas e santas lactantes estão ligadas à fertilidade e maternidade, seja na estátua de Ísis amamentando Hórus[3] (Figura 2), seja nas Madonnas pictóricas (Figura 3) que ainda exercem ideais na sociedade mesmo nos dias atuais. Ostentação de seios, fartura de metáforas, leite jorrando, aleitamento em profusão aparece em Ártemis ou Diana (nome grego ou romano) de Éfeso.

Figura 2: Estatueta egípcia de Ísis amamentando Hórus

Período Ptolomaico 332-20 a.c. Material: Faiança. Dimensões 17x5,1x7,7 cm.

Fonte: Obra em exibição no The Met Fifth Avenue, galeria 134

Figura 3: Pintura de Ambrogio Lorenzetti, Virgem do Leite

Têmpera e ouro sobre madeira, 1324-25.

Fonte: Museu Diocesano (Fondazione Zeri)

A representação escultórica de Diana de Éfeso que enfeita o jardim da Villa d’Este, em Tivoli (Figura 4), é um símbolo da mãe universal que jorra abundante e incessantemente a nutrição que vivifica o fluxo da vida. Sua figura combina elementos gregos e orientais, com fileiras de seios dos quais caem o líquido que mantém verdejantes as plantas no entorno. Com a atenção voltada na estátua de Ártemis (Figura 5), individuamos melhor os detalhes: nas laterais da cabeça, ornada com uma espécie de turbante, e ao longo do vestido, estão amontoados pequenos animais como cabras, veados, cavalos e bois. No pescoço, uma guirlanda com esferas e outras figuras mitológicas.

Figura 4: Fonte de Diana de Éfeso, construída por Gillis van den Vilete em 1568, Tivoli

Fonte: Reprodução online da obra

Figura 5: Estátua de Ártemis de Éfeso. Século II

Fonte: Museu Arqueológico de Éfeso

A seguir, no torso, três filas de protuberâncias arredondadas, túrgidas e sem mamilos. Nesta representação, «Ártemis ostenta diversos seios (ou testículos) no peito, os quais simbolizam o aleitamento e a nutrição (ou, no caso dos testículos, a virilidade da reprodução)», (Sitta, 2023, p. 142). Leite e sêmen, fluidos corporais com análoga potência simbólica feminina e masculina. Outro dado interessante a considerar na representação de Ártemis dotada de muitos seios (Figura 6) é a relação entre todas as formas de vida, seja na terra, na água e no ar: o seu aleitamento nutre, em igual importância, todos os animais, os reais racionais e os mitológicos.

Figura 6: Afresco de Giovanni Maria Falconetto. O signo astrológico de Leão com Diana, dois veados e um sátiro em um sarcófago. Sem data

Fonte: Palazzo d'Arco, Mantua, Itália

A Mãe que amamenta, conhecidas como Virgo lactans ou Virgem do Leite,[4] é uma iconografia que se consolida no ocidente sobretudo no início do século XIV, período em que os traços estilísticos orientais dos ícones religiosos abandonam a solenidade para buscar uma linguagem artística que aproxime os fiéis e as representações cristãs de maneira mais humana e emocional. Os artistas homens (Figura 7) que pintavam as Madonna del latte o faziam sob a perspectiva devocional e sobretudo teológica, na qual o Jesus menino, assim como qualquer outro bebê, necessitava do leite materno para vingar na vida, mas também um símbolo do alimento espiritual. Instigantes, visual e simbolicamente, são as Madonnas que amamentam as almas castigadas do purgatório ou homens adultos que recebem o alívio e a dádiva do leite da Mãe Sagrada.

Figura 7: Leonardo da Vinci, Giovanni Antonio Boltraffio, Madonna Allatta, têmpera sobre madeira, 1940

Fonte: Reprodução online

Em Nossa Senhora das Graças (Figura 8) paira — em primeiro plano e ocupando grande parte da pintura — robusta e magnânima sobre a rochosa paisagem. Ela segura em seu braço o Jesus menino e de seus seios jorram feixes de leite-de-luz, direto nas bocas em salvação das almas do purgatório, que estão aos seus pés. É uma imagem poderosa, as almas enterradas no solo a partir dos ombros e de suas covas saem labaredas e dor mas, ao receberem o leite sagrado, é acesa a esperança da salvação. Na representação pictórica da lactação de São Bernardo (Figura 9), a cena retrata o exato momento do milagre, no qual Bernardo de Claraval recebe um jato de leite da Virgem Maria como recompensa por seu trabalho teológico. Diferente de outras versões mais comuns dessa cena, nesta Bernardo recebe o leite de uma estátua e não de uma aparição pessoal (Figura 10).

Figura 8: Filotesi dell Amatrice, Nossa Senhora das Graças, 1508

Fonte: Reprodução online

Figura 9: Alonso Cano, São Bernardo e a virgem, 1652

Fonte: Museu do Prado, Madri, Espanha

Figura 10: Josefa de Óbidos, Lactação de São Bernardo, 1670

Fonte: Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra, Portugal

As incontáveis representações da Virgem Amamentando, sobretudo na Itália entre os séculos XIV e XV, foram consideradas impróprias e vetadas na arte oficial após a Contra-Reforma[5] que considerou descabido qualquer tipo de nudez, e os seios fartos e nutrientes das virgens foram, em muitas obras, repintados ou até mesmo escondidos. Durante séculos, as representações artísticas de maternidade e aleitamento foram produzidas por artistas homens sem a experiência sensível nem biológica da complexidade corpórea que a define.

Amamentar é uma ação que exige presença corporal, com um alto custo físico, tanto pelo tempo dedicado à tarefa como pelas possíveis dificuldades nos primeiros dias e meses deste mutualismo — seios rachados, pega errada, leite empedrado, mastite e dores são alguns aspectos dolorosos comumente ocultados. Pesquisas recentes, como a feita por Natália Fazzioni e Kátia Lerner (2024), colaboram para a compreensão do ato de aleitar levando-se em consideração a diversidade de raça e classe, especialmente no Brasil, e a relação entre ciência e moralidade nos discursos sobre amamentação.

2. Seios em cena

A partir dos avanços obtidos com a luta política das mulheres na ocupação dos espaços sociais em toda a sociedade, as artistas elaboram, reorganizam e entregam outras materialidades, signos e conceitos das maternagens plurais. Traremos algumas destas artistas para o texto, mas sem esquecer que a equidade entre gêneros, seja em valorização financeira, em oportunidades na construção profissional de carreiras ou na legitimação nos circuitos de arte, ainda está longe de acontecer:

No universo das artes visuais, artistas-mães enfrentam obstáculos que culminam em invisibilidades e vulnerabilidades, visto que a produção artística que envolve a maternagem foi e continua posicionada em um campo de arte menor; que as artistas-mães encontram empecilhos para se afirmarem como tal por receio de um rótulo; que a visibilidade do trabalho é insuficiente, dada as dificuldades de inserção em editais e galerias. Isto atrelado à construção discursiva disseminada pelo advento da modernidade, de um lugar santificado, sagrado e romantizado que a produção artística que aborda a maternidade carrega em sua ancestralidade, construída pelo imaginário masculino sobre a mulher mãe (Guimarães, 2024, p. 97).

No contexto acadêmico também acontecem situações que inviabilizam acessos e pesquisas de mulheres-mães-artistas que pretendem tratar da relação entre arte e maternidade. A artista, pesquisadora e professora Roberta Barros logo no início de seu livro Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira (2016), fruto de sua tese premiada, relata a situação que viveu na entrevista com professores da banca de avaliação para ingresso no programa de pós-graduação:

Cerca de 50 minutos ou mais foram dispensados inteiramente na arguição sobre qual seria minha estratégia para garantir o aleitamento de meu bebê, ainda na barriga àquela altura, enquanto estivesse cumprindo os créditos das disciplinas iniciais do curso, e também para enumerar os casos de insucesso de outras colegas mulheres que se propuseram a multiplicarem-se entre a casa e a rua. Cerca da metade da fala de meus avaliadores, portanto, estava impregnada pelo dever de me confrontar com o imperativo da amamentação (Barros, 2016, p. 10).

Sua performance «Dar de si» (Figura 11) foi realizada em um contexto público dentro da universidade. Segundo Barros, foi uma tentativa de retaliação artística e política àqueles membros da banca que a confrontaram na esperança de a intimidar. A ação da ordenha do próprio leite para ser oferecido num copo de vidro americano ao público provocou reações diversas. Curioso imaginar os motivos pelos quais uma pessoa possa sentir aversão a uma mulher que materializa sua provocação artística a partir da retirada de seu próprio leite. A artista relembra sua performance como um ato de poder e erotismo, tecendo uma relação direta entre o ato de amamentar e o prazer orgástico, entre os líquidos esbranquiçados que saem dos corpos femininos e masculinos por intermédio do prazer, e como já apresentado na arte antiga, a simbólica relação entre o leite e o sêmen.

Figura 11: Dar em si, performance de Roberta Barros, 2015

Fonte: Fotografia da imagem da contracapa de seu livro Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira (2016)

A mistura de gêneros na construção da visualidade da mãe que amamenta é agora apresentada a partir de duas imagens distantes no contexto histórico, mas que nos instiga pela possibilidade do devaneio estético e conceitual, por isso decidimos colocá-las em perspectiva: Magdalena Ventura com o marido e filho, óleo sobre tela de 1631 (Figura 12) e Evan Hempel, fotografia de 2016 (Figura 13). À primeira vista, e sem o conhecimento do título da pintura, vemos duas figuras humanas adultas em um ambiente interno e escuro, como uma luz incidindo nas personagens de maneira focal e dramática. No primeiro plano, centralizada e mais iluminada, uma presença humana de gênero dúbio frontalmente nos encara. Seu olhar resiliente e resoluto nos prende para só então permitir baixarmos o olhar à sua negra e espessa barba, que, ao final desta salta iluminado um seio nu, que amamenta um bebê.

Figura 12: Magdalena Ventura com o marido e o filho ou A dama barbada, óleo sobre tela, José Ribeira, 1631

Fonte: Museu do Prado, Madri, Espanha

O homem menos iluminado, à esquerda do quadro, faz o contraponto do elemento à direita, uma espécie de muro-lápide na qual lemos algumas inscrições em latim, em destaque "O grande milagre da natureza». A história por traz dessa pintura remonta a encomenda, feita ao pintor espanhol José Ribera (Mason, 2017), por seu patrono quando soube da existência de Magdalena Ventura, uma mulher acometida pela hipertricose, um distúrbio raro que provoca crescimento excessivo de pêlos em todo o corpo, exceto nas palmas das mãos e dos pés. No retrato desta mulher barbada, consta que ela teria 52 anos e estava acompanhada de seu marido e seu filho bebê lactente. A representação masculinizada que Ribera faz de Magdalena na expressão, no olhar, nas mãos, contrapõe-se ao seio nu que amamenta o bebê e o título do quadro.

Nossa licença ao devaneio continua ao apresentar a fotografia (Figura 13) de autoria da fotógrafa israelense-americana Elinor Carucci, na qual vemos uma construção clássica de uma cena similar à Virgo Lactans, mas com a diferença de que a pessoa que amamenta é um homem transgênero. Elinor é conhecida por seus trabalhos nos quais fotografa sua família e se auto fotografa no contexto de intimidade, inclusive amamentando seus filhos (Mother, 2003-2012)[6]. A cena trazida aqui enternece: a construção da luz artificial do flash dramatiza os contrastes entre figura e fundo; o olhar e o sorriso amoroso para o bebê deitado sobre as pernas cruzadas do pai; o seio branco que amamenta e os pelos castanhos/ruivos que cobrem o torso, braços e pernas do genitor. Nas duas últimas imagens temos representações tanto de mulheridade, como de maternidade e amamentação que fogem do esperado visual e socialmente.

Figura 13: Evan Hempel, gravidez transgênero

Fonte: fotografia de Elinor Carucci, 2016, Revista TIME, online

 

Características associadas ao masculino estão presentes tanto na pintura quanto na fotografia, provocando-nos a tentar uma aproximação visual entre obras distantes no tempo, no estilo e nas linguagens. Construções feitas por artistas de gêneros distintos, cada qual com as particularidades engendradas pela cultura e pela época sob os quais foram formados. Importante destacar que as movimentações políticas das mulheres confirmam urgentes revoluções para uma sociedade menos ditadora de padrões físicos e sociais, assim como menos violenta e injusta. A partir da fotografia encomendada pela TIME a Elinor Carucci e para a qual foi construído um cenário, iluminação e o próprio gesto, iniciamos a seguir a observação e análise de fotoperformances feitas por mulheres mães artistas nas quais a amamentação figura de alguma maneira.

3. Fotoperformance contemporânea: poética visual de corpos que nutrem

Nas obras de Ana Casas Broda, Catherine Opie, Malu Teodoro, Renee Cox, Elisa Elsie e da dupla Tainã Mello & Tarsila Alves, vemos fotoperformances em que o corpo da própria artista se torna linguagem, matéria e gesto. São ações pensadas para a câmera, construídas para existir apenas enquanto imagem fotográfica. Uma encenação dirigida ao aparato técnico, sem platéia, sem testemunhas além da lente, cujo destino é o instante capturado. Um ato efêmero que transborda os limites do corpo e oferece à fotografia uma nova dimensão estética, na qual performance e imagem tornam-se inseparáveis.

Nas imagens escolhidas para compor esta parte do artigo, as fotoperformances coincidem com o autorretrato, as artistas elaboram representações pessoais e a performance de si para a composição fotográfica. As imagens sustentam um tempo próprio, fragmentado. A mulher mãe performa dentro deste lapso temporal fracionado e criado por ela mesma, elaborando uma espécie de não lugar visual e ficcional. As artistas ressignificam ou ficcionam ações atreladas ao cotidiano e transformam a experiência do ato em fotografia. Neste caso, não há um registro de performance — como normalmente ocorre em performances feitas para o público, nas quais é estabelecida uma relação de respeito entre performer e espectadores —, há uma performance exclusivamente pensada e produzida para um registro estático, fotográfico e perene.

A diferença, como observa Philip Auslander (2019), é fundamental: a performance pública pode acontecer sem ser documentada; já a fotoperformance, ao contrário, depende da fotografia para existir. Ao trazer a fotoperformance para o artigo, não propomos a perspectiva da documentação e do registro. Afinal, como dito acima, as encenações das artistas foram feitas com um objetivo muito específico: tornar-se uma fotografia. Um projeto estético planejado antes da feitura da imagem final. A fotografia como um índice de acesso a uma ação feita no passado com a intenção exclusiva de tornar-se uma obra fotográfica. Estabelecendo uma relação de convite e diálogo de uma visualidade sensível para o público presente e futuro. A imagem como destino do ato, o ato como semente da fotografia.

A autorrepresentação está disponível e de certa maneira acessível às mulheres em suas horas despendidas com os cuidados infantis. Sendo possível encontrar um lugar de fala a partir de si, do corpo. Como falar de uma vivência tão dura para a mulher, neste caso a maternidade e mais especificamente a amamentação através de fotografias? Expressar-se a partir de um corpo-mãe talvez seja uma tentativa de reencontrar o eixo de um corpo despedaçado pelo cansaço, pelas demandas e pelo trabalho contínuo. Uma experiência profunda e difícil de acomodar em palavras. A visualidade aqui como uma forma outra de dizer, ou pelo menos de tentar dizer o que seria a amamentação sob uma perspectiva pessoal e feminista através de uma representação pessoal.

Vale ressaltar que a amamentação encontra-se em uma encruzilhada na contemporaneidade, porque ao mesmo tempo em que pode ser «entendida como um direito reprodutivo e uma experiência que empodera mulheres capazes de controlar seu próprio corpo e boicotar a indústria da fórmula», a amamentação é uma função que demanda tempo, dedicação e intensa interdependência entre lactante e lactente. Essas características provocam a desconfiança dos movimentos feministas, «já que são frequentes os argumentos biologizantes e deterministas que, além de poderem ameaçar direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, podem também servir para aumentar a culpa daquelas que não são consideradas mães «suficientemente boas»» (Nucci, 2024, p. 2). Uma temática com muitas possibilidades de interpretação e para a qual o artigo propõe pensar sobre os modos de representação visuais destas figuras mães na fotografia atual a partir de suas particularidades.

Chegar na contemporaneidade é permitir acessar o processo de produção da subjetividade pessoal que demanda a introdução de diferentes representações e possibilidades visuais da amamentação na sociedade. Ao pensar em subjetividade, aproximamos o entendimento proposto por Paula Sibilia (2016, p. 26) ao afirmar que «a subjetividade não é algo vagamente imaterial que reside “dentro” de cada um», ela só pode existir encarnada em um corpo e embebida em uma cultura intersubjetiva, uma experiência que só pode ser construída na relação com os outros e com o próprio mundo. A performance e a fotografia feita por mulheres mães pode ser um destes caminhos de acesso à subjetividade que negociam novas formas de ver, pensar e imaginar tanto a amamentação como elementos relacionados ao processo de aleitamento a partir da autorrepresentação.

No intuito de tensionar as caracterizações existentes e propor um alargamento das subjetividades, trazemos artistas que produzem obras de autorrepresentação ao amamentar. A seleção foi orientada pela intenção de compor novas narrativas visuais da amamentação na contemporaneidade ocidental, buscando fraturar e desestabilizar conceitos arraigados, bem como práticas sociais e culturais que sustentam sistemas de opressão e violências simbólicas. Tal abordagem se volta especialmente para as experiências femininas e feministas no campo da arte. As fotoperformances foram feitas em ambientes distantes dos espaços convencionalmente planejados para o aleitamento, como poltronas específicas ou sofás acolhedores que acomodam corpos segundo uma normatividade. As mulheres retratadas se distanciam esteticamente das representações maternas que habitam parte do imaginário: elas estão nuas ou parcialmente nuas e expressam, na maioria das vezes, cansaço ou indiferença, instaurando uma ruptura com modelos idealizados.

Importante destacar que neste momento em que iremos nos debruçar mais demoradamente sobre imagens fotográficas, o pensamento da autora americana Susan Sontag sobre o fato das imagens poderem ser mais reais do que qualquer pessoa poderia supor. Para ela, a industrialização da fotografia permitiu «sua rápida absorção pelos meios racionais — ou seja, burocráticos — de gerir a sociedade» (Sontag, 2004, p. 32) e novos significados para a ideia de informação erigiram-se em torno da imagem fotográfica dentro desse contexto de mundo-imagem criado por câmeras. A partir do uso das câmeras foi possível implementar uma visão instrumental da realidade, quase capaz de transformar a própria realidade em uma sombra: «de um lado, câmeras armam a visão a serviço do poder — do Estado, da indústria, da ciência. De outro, câmeras tornam a visão expressiva nesse espaço mítico conhecido como vida privada», (Sontag, 2004, p. 193). O avanço tecnológico, o acesso aos equipamentos e a inserção da fotografia nos mercados de arte desde o século passado proporcionaram uma liberdade estética e visual a uma técnica criada inicialmente com o intuito de documentar e que hoje se desdobra em uma linguagem híbrida de expressão pessoal.

A fotografia, enquanto linguagem visual, tem delineado na contemporaneidade um salto estético que permite não apenas a partilha de experiências, mas também a hibridização com outras formas de arte. Adolfo Montejo Navas (2017) propõe o termo fotografia transversa para abarcar os atravessamentos de sentido e a abertura a experiências perceptivas que extrapolam a superfície da imagem, seja ela impressa ou projetada em dispositivos eletrônicos. Nos interessa a transversalidade fotográfica que reivindica a possibilidade de cruzamentos linguísticos e estéticos, borrando fronteiras entre o exterior e o interior de quem fotografa. Ao mobilizar os elementos próprios de seu vocabulário, como enquadramento, ângulo, iluminação e profundidade de campo, por exemplo, a fotografia se expande em direção a outras estratégias representacionais e processos de imaginação, desafiando limites convencionais. Nesta fluidez, os dispositivos imagéticos tornam-se mais porosos entre si, instaurando um campo de diálogo entre distintos fluxos visuais (Navas, 2017). Trata-se de uma linguagem visual que tenta expressar o que a excede — talvez aí resida uma de suas maiores potências: a capacidade de perseguir o indizível.

Os trabalhos apresentam a poética visual de corpos-mães performando a si mesmos ou encarnando personagens concebidas especificamente para a criação da imagem. As fotografias abrem passagem para espaços fechados e íntimos, agora disponíveis ao olhar. Há um roçar sutil entre o perto e o longe: a imagem convoca espectadoras/es a transitar entre o aqui e agora, entre a presença performada e o tempo do ver. Embora haja um hiato temporal entre o instante da performance e o momento de fruição da imagem, a fotografia opera como ponte, ao encurtar distâncias e sobrepor camadas de sentido. Conduzindo então quem vê a fotografia a um não-lugar fabricado pela artista, de uma cena desfeita, um instante passado, mas que permanece fixado e guardado no registro visual. A imagem, assim, persiste como vestígio e presença, tensionando os limites da permanência.

3.1. Você está morta, Malu Teodoro

Você está morta (2018-2021) é um ensaio composto por nove fotografias feitas por Malu Teodoro, artista brasileira multimeios, quando sua filha tinha dois meses, dentro da casa em que ela havia construído com o pai da bebê. As obras impressas em jato de tinta na dimensão de 16 x 11 possuem bordados únicos acrescentados ao longo dos anos. Cada uma das frases costuradas sobre a pele da imagem foi dita pelo pai da criança e então companheiro. Na primeira (Figura 14), temos uma mulher amamentando um bebê recém-nascido em um cômodo iluminado por uma janela e cinco vitrais coloridos. A claridade difusa e o desenho luminoso em semicírculo sobre as cabeças, evocam uma atmosfera de sacralidade — uma aura que remete a figuras angelicais ou santificadas, como vistas nas figuras 3 e 10 deste artigo. No entanto, o bordado desloca a cena para um outro lugar: «PUTA MENTIROSA» quebra a placidez da imagem e viola os corpos presentes. Um «x» censura o mamilo e o olho esquerdos. A mulher em pé, evita olhar para a câmera e para a bebê. Os cabelos escuros caem sobre o ombro e os pelos pubianos tornam-se visíveis entre as letras.

Figura 14: Série Você está morta, Puta Mentirosa 16x11cm, fotografia e bordado, 2018-2021

Fonte: Portfólio da artista Malu Teodoro, online

O ensaio visibiliza episódios de violência doméstica no contexto de uma relação afetiva com o pai de sua filha. As agressões verbais sofridas nos primeiros meses e anos da criança reverberaram silenciosamente até emergirem, transmutadas em linhas, na superfície da imagem. O projeto nasce do desejo de romper com o silêncio, de expor a violência de gênero e, simultaneamente, de evidenciar a exaustão imposta pela sobrecarga do trabalho materno. As fotoperformances realizadas com a filha adquirem novas camadas de significação por meio da incorporação dos bordados, uma vez que os elementos costuram, literal e simbolicamente, corpo e denúncia. Nas três imagens selecionadas para o artigo, a artista amamenta. A obra subverte a iconografia idealizada da mãe nutridora e escancara, com força poética, a brutalidade verbal dirigida a uma mulher recém-mãe.

Uma obra artística é uma estratégia de não silenciamento e amplia o debate sobre um tema presente no cotidiano. O que está dentro pode ser bordado sobre a pele e o que é sentido pode ser transformado em uma obra artística. As fotografias são uma brecha de acesso ao espaço íntimo da casa, do lar, ambiente historicamente reservado para algumas mulheres e suas crianças. Um espaço que também abriga a agressão, a crueldade e, em casos extremos, a morte. Utilizar a fotografia é percorrer trajetórias transversais de significação por meio de uma performance de si feita para um registro fotográfico. Unir a experiência verbal à experiência visual e manual (bordado) intensifica a polissemia da imagem.

«Não vejo a hora de você parar de amamentar». As letras cobrem parcialmente o rosto da artista (Figura 15). A mulher sentada tem uma das mãos apoiando o corpo e a cabeça da bebê, que mama o seio direito. A reprodução da espécie humana ainda depende[7] de um corpo com útero e os atos biológicos de gestar, parir e amamentar foram transformados histórica e culturalmente em uma imagem de sacrifício e renúncia pessoal da mulher. Apesar da amamentação ser um aprendizado, ou seja, uma conquista técnica humana, as mulheres são quase compulsoriamente sujeitas a desempenharem a função de forma natural, como se fosse um conhecimento inerente ao gênero, mesmo requerendo um aprendizado mútuo da mulher e do bebê.

Figura 14: Série Você está morta, Não vejo a hora de você parar de amamentar, 16x11cm, fotografia e bordado, 2018-2021

Fonte: Portfólio da artista Malu Teodoro, online

Encerrar a lactação pode ser uma escolha difícil e motivada por diferentes razões. Ao cobrar este fim a uma mulher puérpera, e caso não seja o desejo dela, o parceiro promove insegurança e pressão para finalizar um período de alimentação, trabalho e afeto construído por mãe e bebê. Gabrielle Gimenez, escritora brasileira na área de amamentação, assegura que na espécie humana, caso a cultura da amamentação fosse incentivada, apoiada e respeitada, as crianças desmamariam naturalmente entre os dois e sete anos (Gimenez, 2020), caso assim quisesse a mãe. Um homem, ao sugerir ou impor o fim da amamentação pode ter como fundamento possuir uma exclusividade em relação ao corpo da mulher com a qual se relaciona.

A escritora Carla Madeira, em Tudo é rio (2021), narra a cena do homem arrancando dos braços da mãe o próprio filho e arremessando-o contra o chão, tamanho ciúme ao ver a criança mamando. A ficção do livro reflete a realidade e ampara-se na possessividade masculina sobre corpos femininos alicerçada no patriarcado ocidental, sistema familiar, social, ideológico e político «com o qual os homens — por meio da força, da pressão direta, dos rituais, da tradição, da lei ou da linguagem, dos costumes, da etiqueta, da educação e da divisão do trabalho — determinam qual papel as mulheres devem ou não desempenhar» (Rich, 2019, p. 106) para permanecerem sujeitas aos homens em todas as circunstâncias. Historicamente, esse sistema encontrou maneiras de estabelecer um rígido controle sobre a mulher e por jamais ter sido contestado totalmente pela civilização ocidental, e, de tão universal, é praticamente considerado uma lei natural que determina papéis e funções interpretadas pela maioria das mulheres. Seguimos pensando patriarcado com Adrienne Rich (2019) ao dizer que

no patriarcado, poder é uma palavra e uma relação primária. O homem, tendo a mãe sob seu controle, assegura a posse de seus filhos e, por meio do controle deles, assegura a disposição de seu patrimônio e a passagem segura de sua alma para a morte. Consequentemente, parece que, desde os tempos mais remotos, a identidade e a personalidade do homem dependem do poder, e poder em seu sentido específico: o poder sobre os outros, começando pela mulher e seus filhos (p. 114, grifo da autora).

Embora trabalhemos neste artigo com as noções de patriarcado propostas por Adrienne Rich, trazemos brevemente para o texto algumas reflexões da autora norte-americana Gayle Rubin (2017, p. 3), cuja expressão «sistema de sexo/gênero» pretende abarcar melhor a discussão sobre como «uma série de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas». As condições biológicas do sexo humano e da procriação são moldadas através da intervenção humana. Sendo que, para a autora, a opressão das mulheres não foi criada no capitalismo, apenas retomada e de certa maneira reforçada por este sistema sócio-econômico, ao colocar em circulação conceitos de masculino e feminino que o antecedem em muitos séculos. O termo patriarcado passa então a ser utilizado como maneira de distinguir «as forças que mantêm o sexismo de outras forças sociais, como o capitalismo» (Rubin, 2017, p. 13).

Feita esta explicação, voltamos ao trabalho de Malu Teodoro. «O seu feminismo acabou com o nosso casamento» (Figura 16), esse texto bordado quase pode transmitir o som dolorido das palavras. Os bordados inserem uma camada física às fotografias impressas, mas para além da materialidade, temos a delicadeza das linhas contrastando com a agressividade do texto. Furar a superfície do papel propositalmente com a ponta da agulha assemelha-se ao ato brutal e pungente de proferir sentenças cruéis que atravessam corpo e alma.

Figura 16: Série Você está morta, O seu feminismo acabou com o nosso casamento, 16x11cm, fotografia e bordado, 2018-2021

Fonte: Portfólio da artista Malu Teodoro, online

Os conceitos utilizados por Barthes (1984) ao se referir a características fotográficas, studium e punctum, nos ocorrem ao descrever as fotografias. Para o autor do livro A câmara clara, o termo em latim studium refere-se aos objetos em cena, a cor e as composições estéticas. Já o punctum seria a picada, talvez aqui o gesto de amamentar ou mesmo as frases: «o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)» (p. 46, grifo do autor). A picada também pode fazer referência ao sentimento único que cada pessoa tem ao ver uma imagem e sensibilizar-se ou não com ela. Nessa fotografia, provocamos pensar o punctum a partir dos furos feitos no papel para receber as linhas.

Retornamos aqui ao feminismo e à luta das mulheres por direitos iguais na sociedade que incomodam e tentam fraturar as estruturas sociais alicerçadas no poder masculino. A coletânea das obras pretende balançar e colocar em crise este poder. Maria Lugones (2014) afirma que quando mulheres do terceiro mundo e racializadas percebem e compreendem as divisões sociais, tendem a contestar o universalismo feminista contemporâneo reivindicando a existência da intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero para além das categorias da modernidade (Lugones, 2014). A pesquisadora Andrea O’Reilly (2016) acrescenta ainda mais uma camada: a maternidade.

Tornar-se mãe é vivenciar e constatar as desigualdades de gênero históricas e sociais nas atribuições de cuidado. Os feminismos auxiliam a compreensão de que os papéis sociais relacionados a este tipo de cuidado precisam ser melhor distribuídos. Reivindicar direitos e ampliar a discussão sobre questões estruturantes da sociedade pode ser um caminho de luta por equidade nas tarefas domésticas não-remuneradas. A maternidade, assim como todo o trabalho físico e mental que envolve, foi transformada «em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina» (Federici, 2019, p. 42). Apesar das condições biológicas da mulher, com a possibilidade de gerar uma vida, não há um aparato genético responsável pelas demandas do cuidado, sendo uma construção social, política e econômica. Permanecer socialmente como está é uma forma de consolidar e perpetuar a dominação masculina.

3.2. Autorrepresentações: Kinderwunsch, de Ana Casas Broda, Self-portrait/Nursing, de Catherine Opie e Yo mamá, Renee Cox

O corpo materno é um território de subjetividade, mas também pode ser de dissidência e força. Cuidamos em trazer aqui três obras de artistas que operam uma ruptura simbólica com a representação da maternidade como alegoria idealizada. Assim como Malu Teodoro, elas posicionam a amamentação não como uma cena privada, mas como ato público e estético de resistência. A obra sem título (Figura 17) da artista espanhola Ana Casas Broda, integra o ensaio pessoal de longo termo Kinderwunsch (2006-2013), que em uma tradução livre para o português significa desejo de ter filhos. A motivação do projeto foi a pressão da contagem regressiva biológica a qual as mulheres são submetidas quando a questão é ter filhos. Ana não somente decidiu correr contra este relógio biológico como registrou todo o processo de engravidar, parir e cuidar de maneira crua, com iluminação pontual e cenários construídos para as fotografias.

Na imagem (Figura 17) há um tipo de jogo performativo que se desenrola no espaço doméstico e alguns elementos ajudam a criar a atmosfera de intimidade: o tapete vermelho no chão, a porta em penumbra lateral e um gato atento. A artista se posiciona nua, deitada no centro da imagem sobre o tapete, enquanto amamenta seu filho vestido com um pijama. Os corpos no chão subvertem as imagens presentes no imaginário: não há poltrona de amamentação ou conforto. A artista está ali, com o corpo aberto e disponível para alimentar sua cria.

Figura 17: Sem título, Ana Casas Broda, Kinderwunsch (2006-2013)

Fonte: Fotografia do site da artista Ana Casas Broda, online

Seguimos com a artista norte-americana Catherine Opie, em sua obra Self-portrait/Nursing (Figuras 18 e 19), que em português seria auto-retrato amamentando. Ela opta por uma composição frontal e estática, talvez inspirada na tradição do retrato clássico, com fundo decorativo vermelho e enquadramento fechado. Entretanto, sua obra pode ser tudo menos tradicional: o corpo nu, tatuado e seios fartos desafiam padrões hegemônicos de beleza, sexualidade e maternidade. O gesto de aleitar como cuidado, pertencimento e afirmação de corpos dissidentes que também nutrem, criam e geram vínculos.

Figura 18: Self-portrait/Nursing, Catherine Opie, 2004, fotografia

Fonte: The Guggenheim Museum, online

Figura 19: Self-portrait/Nursing, Catherine Opie, 2004, fotografia, exposta no Masp, SP, 2024

Fonte: Fotografia de Eduardo Ortega

Nesta seção trazemos ainda uma fotografia da série Yo Mama (Figura 20), da artista afro-americana Renee Cox, na qual ela segura seu filho bebê em braços fortes e musculosos. Ambos nus e o único objeto em cena é o sapato de salto alto que a artista calça. Ela e a criança encaram a câmera. A luz de estúdio quase não deixa sombras pelos corpos que sobressaem sobre o fundo preto. No site da artista, Renee fala: «Decidi que ia mostrar a gravidez de cara — e foi o que fiz. Em outras sociedades, as mulheres permitiam que os homens dominassem. E eu pensei: Não. As mulheres são fortes pra caramba. Você faz alguém em quarenta semanas; isso é fenomenal. Esse é o poder de uma mulher», (Renee, online). Nela há uma construção da figura da mãe empoderada que oferece refúgio e a sensação de segurança. Renee é uma artista atuante há décadas e fortemente inspirada no movimento pelos direitos civis de negros americanos. A pesquisadora Marta Mencarini Guimarães (2024, p. 281), responsável por um mapeamento contemporâneo de artistas mães brasileiras, traz a seguinte reflexão sobre a obra de Cox:

Temos então que Renee Cox (1960), na obra Yo Mama (1993), utiliza-se da linguagem fotográfica a fim de elaborar uma contranarrativa visual, desestabilizando os conceitos e práticas sociais opressivas e violentas que recaem sobre as mulheres negras. A artista elabora uma possível desconstrução das imagens de controle (Collins, 2019) sobre os corpos de mulheres negras, assumindo as ambivalências características da maternidade e da maternagem e concomitantemente construindo ressignificações simbólicas para outras mulheres negras e mães.

A fotografia de Renee (Figura 20) nos leva ao texto da escritora norte-americana Tina Campt (2017) que provoca suas/seus leitoras/es a perceberem a fotografia para além da visão, ativando, especialmente, a audição. A pesquisadora investiga acervos fotográficos da diáspora africana e com ela compreendemos que «olhar ou observar é apreender apenas num nível sensorial. Ouvir requer uma sintonia com as frequências sonoras de afeto e impacto. É um conjunto de ver, sentir, ser afetado, contatado e movido além da distância da visão e do observador», (Campt, 2017, p. 42). Para apreender uma fotografia é preciso estar com os sentidos abertos e sensíveis para as mais sutis modulações visuais e sonoras. Para nós, nesta foto de Renee, a presença corporal da mulher negra quase grita de poder e força.

Figura 20: Sem título, da série Yo Mama, 1992-4, Renee Cox

Fonte: Site da artista Renee Cox, online

As três imagens, embora formal e esteticamente distintas, se afastam dos modelos de representação da mãe convencional. A fotografia de Ana Casas desestabiliza a fronteira entre arte e vida ao incorporar a performance da amamentação como uma ação estética propositalmente feita para se tornar uma imagem na qual há um ambiente organizado e iluminado para este fim, assim como a performance corporal da artista que se auto-fotografa. Opie[8] constrói uma teatralidade controlada, de inspiração pictórica, que contrasta com a densidade corporal e afetiva do ato registrado. Os seios são centrais, não apenas como símbolo erótico ou maternal idealizado, mas como órgão funcional, exercendo sua função alimentar. Já Renee Cox traz a força do ato de sustentar o filho, tanto de maneira física, literalmente, como através dos peitos que são capazes de produzir leite, embora quem veja a imagem não tenha certeza de que o ato foi feito. Ela está imóvel, séria e com os músculos contraídos, uma mulher maternal, mas ao mesmo tempo sensual. As fotografias apresentadas ajudam a ampliar os contornos do que se entende por maternidade ao reivindicar o físico e também a lactância como prática estética permeada pela liberdade visual da autorrepresentação.

3.3. O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada, Tainã Mello & Tarsila Alves e O leite do fim, Elisa Elsie         

Finalizamos a seleção de imagens deste artigo com três obras que abordam a invisibilidade materna associada à amamentação. Produzir leite é sim uma condição biológica, mas existem distintas maneiras de legitimar este estado natural da mulher ao se tornar mãe e atrelar tal condição aos cuidados com as crias vai depender de interesses econômicos, culturais, políticos e sociais de cada período. Porque dependendo do momento em que a sociedade vive, as palavras amamentação e desmame serão compreendidas dentro da lógica vigente. Para a pesquisadora brasileira Eliane Cadoná (2010), que investigou a produção da maternidade contemporânea nas campanhas de amamentação do Ministério da Saúde, a amamentação não pode ser explicada somente pela biologia:

Não resta dúvida que a ciência, cada vez mais, descobre a importância do leite humano e os seus benefícios para as crianças em desenvolvimento. Seus méritos nutricionais são inegáveis. O que se percebe é que, com o tempo, a união dos discursos provindos da Psicanálise e de outras áreas da ciência elevaram a amamentação a um status que hoje abrange uma cobertura internacional e que incide diretamente sobre a vida de muitas mães que têm crianças em período de lactação (p. 45).

A depender dos interesses do momento histórico (religiosos, econômicos, sociais…), essa função será reforçada ou não dentro do contexto familiar de cuidado, podendo tornar-se mais uma camada de opressão. Iniciamos este trecho final com a fotografia O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada (Figura 21), das artistas cariocas Tainã Mello & Tarsila Alves, que constitui uma interseção entre arte e performance do corpo materno negro. Importante destacar aqui que a invisibilidade materna para mulheres negras e racializadas provocam tensões ainda mais complexas. A história brasileira, marcada pela escravidão e por serviços forçados prestados pelas mulheres, mães-pretas, que amamentavam crianças nascidas do ventre das sinhazinhas (Gonzalez, 2020) são fatores importantes para compreender a dimensão política de uma mulher preta que amamenta sua própria criança na contemporaneidade. No texto de apresentação da obra, escrito pelas próprias artistas, lemos o seguinte:

Após passar pelo processo vida-morte-vida do gestar, parir e nutrir a mulher mãe se encontra em outra realidade. Todo aquele viço, brilho, cores vivas e o frescor antes exibido por todo corpo, transformou-se em desaguar, tudo agora é seco, sem brilho, tudo parece muito com a morte. O corpo ressecado é a manifestação da morte simbólica da mulher do passado, porém ainda é o corpo da mulher mãe no presente, aquela que nutre e protege sua cria. Resta alguma conexão da mulher do passado com a mulher mãe do presente? (Mello, Alves apud Guimarães, 2024, pp. 280-281).

Vemos na fotografia uma mulher negra sentada, de torso nu, pintado em tons terrosos de laranja e cinza, que amamenta, nutre, a criança que está em pé e toca as pernas da mãe com as mãos. A escolha cromática natural, os peitos abundantes e os gestos corporais constroem uma visualidade singular. O título da obra, ao estabelecer uma conexão sensorial entre tempo e natureza, insere a cena em um campo poético de significações que ultrapassam o presente da imagem. Sugere uma temporalidade cíclica e encarnada, marcada pela urgência da vida após uma experiência simbólica da morte e pela fertilidade das raízes históricas. A relação entre corpo, terra e tempo coloca a figura materna como elo entre ancestralidade e porvir, fazendo da amamentação um gesto ritual de continuidade e escolha. Um corpo nutridor, com tinta ressecada sobre a pele, que luta por sobrevivência pessoal e da cria. Nesta fotografia, a morte da mulher do passado abre espaço para a mulher atual, pós-parida, que precisa seguir protegendo e alimentando apesar do cansaço.

Figura 21: O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra, (nº 01), fotografia, 2022

Fonte: Tainã Mello & Tarsila Alves

A centralidade dos seios pintados e a postura frontal da mulher sem olhos, lançam a maternidade para além do campo íntimo. O corpo materno negro, tantas vezes invisibilizado ou exotizado na história da arte, aparece aqui como sujeito ativo, que se autorrepresenta e reivindica um espaço de fala. O corpo sólido da mulher negra em contato com a criança através de peito e pele.

O ambiente ao redor reforça a ideia de luta e resiliência, a torneira fechada ao fundo traz a ideia da secura. É possível pensar em que medida o futuro, a secura, a incerteza estão ligadas ao advento da maternidade, assim como às transformações corporais-existenciais e às responsabilidade impostas à mulher-mãe, que apontam para um futuro de escassez e dificuldades () Patrícia Hill Collins (2019), ao analisar as imagens de controle, sublinha a importância da autodefinição e da autoavaliação das mulheres negras como temas centrais no pensamento feminista negro. Esses conceitos são fundamentais para resistir e superar as imagens estereotipadas que têm sido impostas externamente sobre as mulheres negras (…) as mulheres negras reivindicam o poder de criar e afirmar suas próprias identidades, livre das distorções impostas por forças externas. A autoavaliação permite que as mulheres negras se vejam sob uma luz mais positiva e precisa, baseada em suas próprias percepções e experiências vividas, em vez das percepções distorcidas da sociedade (Guimarães, 2024, pp. 282-284).

Neste trecho, Marta Mencarini Guimarães (2024), elabora sobre o espaço escolhido para a foto, assim como a importância de mulheres negras reivindicarem e afirmarem suas próprias identidades, fugindo do olhar hegemônico e distorções, provocando uma ruptura com os cânones estéticos tradicionais. A imagem recusa o conforto e a suavização da experiência materna. O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada configura-se quase como um manifesto visual. Através da fotoperformance, Tainã Mello & Tarsila Alves constroem uma visualidade insurgente que ressignifica o gesto de amamentar a partir de um corpo racializado, politizado e criador de mundos. Trata-se de uma obra que, ao mobilizar sensações e noções estéticas, propõe a maternidade como experiência radical e coletiva de existência e resistência. Pedimos licença para fazer um comparativo da mulher sem rosto na fotografia de Mello & Alves à mulher negra anônima descrita por Lélia Gonzalez, para quem a valorização da mulher pelas diferentes culturas negro-africanas sempre se deu a partir da função materna:

… a mulher negra anônima sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família é quem, a nosso ver, desempenha o papel mais importante. Exatamente porque com sua força e corajosa capacidade de luta pela sobrevivência nos transmite a nós, suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não nos recusarmos à luta pelo nosso povo. (…) ela é portadora da chama pela libertação, justamente porque não tem nada a perder, (Gonzalez, 2020, p. 64).

Seguimos com a análise de duas fotografias do ensaio O leite do fim (2020-2024), no qual a amamentação está em sua fase final. A série foi produzida (em parte) no contexto de pandemia pela artista Elisa Elsie, uma das autoras deste artigo, e está presente na dissertação Corpo-mãe: um auto olhar na fotografia contemporânea (Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia, PPgEM, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, 2022), nela a amamentação é incluída na lista de trabalhos não remunerados exercidos pelas mulheres. A produção das fotos foi realizada em meio ao cansaço físico/mental e indignação diante da invisibilidade do trabalho de mulheres que cuidam de crianças pequenas, com rotinas longas e exaustivas, e, no caso, em contexto de confinamento vivido durante o período da pandemia (2020-2023), no qual era praticamente inviável contar com rede de apoio, escola ou qualquer outra forma de divisão de tarefas para além do núcleo familiar.

Na obra Fábrica (Figura 22), há uma mulher sem corpo visível, os seios brotam do tecido branco amarrotado, com mamilos e aréolas disponíveis para quem vê a imagem. O corpo fracionado, invisibilizado e reduzido ao peito-alimento. A maternidade parece possuir a condição de fragmentar a organização biológica, tornando a experiência em um fardo físico de reprodução e trabalho para a mulher. Os tecidos remetem ao costume de se usar fralda de pano para esconder seios ou boca/rosto do bebê/criança durante a amamentação. A fotografia anuncia também uma área comumente erotizada do corpo da mulher, um seio nu, cuja atribuição natural após gerar e parir uma criança é a amamentar. Aqui temos «a carga elétrica do erótico confrontando a função biológica de produzir leite» (Beserra, 2022, p. 89).

Figura 22: Fábrica, da série O leite do fim, 2020. Fotografia

Fonte: Arquivo pessoal da artista Elisa Elsie

O seio não é local de estocagem, especialmente quando há uma rotina de amamentação, e a demanda se adequa às necessidades e solicitações da criança. O leite é produzido à medida que a sucção é feita, ou seja, uma verdadeira fábrica. Visibilizar esta função e questioná-la a partir do formato socialmente aceito por meio de imagens é um percurso negociado pela fotografia contemporânea. Neste sentido e considerando os estudos e movimentos sociais feministas, é possível traçar trajetórias divergentes para um corpo mãe social e questionar o fato da interação humana com um bebê/criança ser responsabilidade quase exclusiva das mulheres. Homens e demais cuidadoras/es podem auxiliar em diversas funções, amenizando a sobrecarga imposta às mulheres lactantes. Como assumir a responsabilidade da nutrição infantil ao oferecer leite (humano ou não) ou fórmulas específicas.

A segunda fotografia da série é Apojadura (Figura 23) uma fotoperformance feita na cozinha, ambiente característico das casas no qual normalmente as refeições são preparadas. Aleitar é também alimentar, inserir o ato em um espaço dedicado à alimentação familiar reforça a possibilidade e necessidade de nutrição em qualquer idade e em qualquer lugar. A nudez parcial da mulher e da criança, a louça à espera de limpeza e a cozinha desorganizada completam um cenário não convencional de amamentação.

Figura 23: Apojadura, da série O leite do fim, 2020

Fonte: Arquivo pessoal da artista Elisa Elsie

No processo de formação infantil, especialmente logo após o nascimento, o mundo perceptivo começa pela boca da criança e a relação humana com os alimentos segue fazendo parte da rotina diária. Uma criança de quatro anos está em pé e recorre ao seio da mãe para alimentar-se ou encontrar conforto. Um tipo físico infantil diferente dos vistos no buscador inicialmente citado no artigo. Assim como nas duas fotos anteriores desta seção, a mãe nutriz não tem rosto visível, o cabelo e a posição curvada escondem a fisionomia do corpo-mãe. Apojadura tem a intenção de confrontar as imagens comumente vistas de amamentação com bebês de colo abrindo espaço para uma nova representação da mulher que amamenta bem como da criança que mama em pé, assim como a criança da figura 21. Embora existam benefícios incontáveis sobre a ação de amamentar, isso não deixa de entrar na conta do trabalho materno.

Vale destacar que a amamentação pode se tornar um fator de pressão e opressão diante das condições de cada mulher. No Brasil, por exemplo, a licença maternidade é de quatro meses na maioria dos trabalhos formais, sendo que há uma recomendação do Ministério da Saúde juntamente com a Organização Mundial de Saúde (OMS) de aleitamento exclusivo até seis meses, e até pelo menos dois anos em conjunto com alimentação tradicional. A conta não fecha, especialmente para os primeiros meses do bebê. Aleitar é sim trabalhar. Um trabalho sem remuneração e que nem sempre poderá ser desempenhado pelas mulheres, seja pelas condições físicas, sociais ou psicológicas, dificuldades práticas ou ainda desinformação. Compreender a natureza do corpo humano e valorizar os atributos pode ser reconhecido como «um esforço em direção à luta pela autonomia reprodutiva das mulheres», contudo, «a essencialização de uma noção de natureza universal pode instaurar armadilhas» (Alzuguir & Nucci, 2015, p. 236) uma vez que cada pessoa vive um contexto familiar e social que será determinante para a continuidade ou não da amamentação.

Além disso, vivemos sob um conjunto de normas, imposições e diretrizes sobre a instituição materna que segue sendo construído, mantido e fortalecido socialmente, as artistas percorrem o caminho de confrontação, desmonte ou de pelo menos desestabilização desse combo opressor. A instituição da maternidade não evoca uma arquitetura específica ou uma personificação do poder, mas está relacionada especialmente ao ambiente da casa, íntimo e privado, uma instituição intocável e normalmente invisível (Rich, 2019). A mesma invisibilidade é vivenciada pela maioria das mulheres em funções de trabalho doméstico e sem dúvida a amamentação é um desses.

Considerações finais

Os estudos maternos não reduzem a complexidade das mulheres mães à maternidade e priorizam suas vidas ao investigá-las em sua completude (Lemes, 2021). Embora todos os feminismos lancem luz sobre as diferentes narrativas de opressão das mulheres, a maternidade naturalizada e sem a consideração das concepções culturais e sociais que a transformam num importante instrumento opressor, omite aspectos fundamentais da sua manifestação. Inserir as questões maternas nos debates acadêmicos é urgente, compreendendo que o processo de subjetivação social não se desliga do gênero, sendo este atravessado por diversos eixos de opressão (Sardelich & Nascimento, 2020). Sendo que um desses eixos é a maternidade, embora ainda permaneça como assunto pendente no feminismo contemporâneo, particularmente nos debates acadêmicos. Apesar de décadas de lutas feministas, as mães continuam sendo duplamente oprimidas pelo patriarcado: primeiro, porque são mulheres; segundo, porque são mães (Collier de Mendonça, 2021).

Dentro do contexto de opressão temos ainda um corpo nutriz cercado de estereótipos construídos ao longo dos séculos e milênios. Entre os ciclos de fartura e pudor, vivemos muitas fases históricas da figura lactante. Fraturar a imagem presente no imaginário social é um processo que requer subversão e tempo. Legitimar e negociar um novo repertório imagético fotográfico contemporâneo produzido por mulheres mães artistas é apontar caminhos possíveis de produção, mas também é revistar o passado da história da arte com mulheres de seios abundantes e úmidos.

A fotoperformance feita por mulheres artistas sob a ótica da amamentação nutre um caminho visual fluido de significados. O texto surge na intenção de apresentar brevemente esculturas e pinturas históricas ocidentais ao mesmo tempo em que visibiliza novas formas de representação através da performance e da fotografia contemporânea feitas por artistas inquietas. As obras contemporâneas alinhavam uma resistência aos formatos idealizados socialmente da estrutura física da pessoa lactante e há o distanciamento da figura da mulher mãe passiva e registrada por uma outra pessoa. Com Paula Sibilia (2016, p. 58), compreendemos que «usar palavras e imagens constitui uma forma de agir: graças a elas podemos criar universos e com elas construímos nossas subjetividades, nutrindo o mundo com um rico acervo de significações", mas sem esquecer que «toda comunicação requer a existência do outro, do mundo, do alheio, do não-eu, por isso todo discurso é dialógico e polifônico». O recorte de artistas apresenta um pequeno repertório de obras nas quais há uma construção deste discurso plural.

A performance de Roberta Barros assim como as fotoperformances das artistas Malu Teodoro, Ana Casas Broda, Catherine Opie, Renee Cox, Elisa Elsie, Taianã Mello e Tarsila Alves são indicativos de que está em curso uma produção artística contemporânea desestabilizadora da compreensão tradicional da maternidade e mais especificamente da amamentação, na qual as subjetividades afrontam padrões instituídos socialmente. Artistas valendo de estratégias visuais como forma de legitimar experiências pessoais em desobediência aos modelos estabelecidos para a maternidade. Não se furtam em expor e provocar desconfortos e redefinições estéticas, sem esquecer da riqueza artística que as antecedeu e pavimentou trajetos.

O fato é que cada artista traz para o seu ambiente criativo, vestígios e vivências incorporadas aos seus próprios conceitos de mãe, encontrando caminhos de fala, produção e sobrevivência. Uma produção permeada temporal e fisicamente pelo cuidado infantil, ou seja, processos feitos com o tempo que sobra das atividades relacionadas à criança. Confrontar estereótipos ou mesmo ressignificá-los exigirá um deslocamento de eixos teóricos e conceituais em direção a um novo lugar no qual a mulher mãe pode se autofotografar, performar e construir uma autorrepresentação diferente do que o imaginário coletivo espera de uma mulher que amamenta.

Referências

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Contribuições dos autores (CRediT): 1. Conceituação; 2. Curadoria de dados; 3. Análise formal; 4. Aquisição de financiamento; 5. Investigação; 6. Metodologia; 7. Administração de projetos; 8. Recursos; 9. Programas de computador; 10. Supervisão; 11. Validação; 12. Visualização; 13. Escrita: rascunho original; 14. Escrita: revisão y edição. E. E. S. B. contribuiu em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14. A. P. S.  contribuiu em 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 12, 13. M. A. P. contribuiu em 1, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 11 e 14.

Editado por: O comitê editorial executivo Juan Scuro, Pilar Uriarte, Victoria Evia e Martina García aprovaram este artigo.

Nota: O conjunto de dados nos quais se baseiam os resultados do estudo não está disponível.


[1] A busca foi realizada em diferentes meses — sendo a última em 29 ago. 2025 — e os resultados foram similares em todas.

[2] Em uma palestra on-line da artista Ana Álvarez-Errecalde (em 2021 e organizada por uma das autoras, Elisa Elsie), ela se referiu às buscas imagéticas do Google como um suposto novo «imaginário coletivo contemporâneo» e destacou a importância de confrontá-lo assim como de construir novos repertórios visuais a partir da arte.

[3] As imagens de Ísis, poderoso símbolo do período ptolomaico e posteriormente transferido para Roma, foram muito populares nos períodos que antecederam a chegada do cristianismo ao Egito e, possivelmente, originaram as imagens que representam a Virgem Maria. Disponível em https://www.metmuseum.org/art/collection/search/548310. Acesso em 07 abr. 2025.

[4] A pesquisadora Ana Sabiá (2015) realizou na dissertação de mestrado uma pesquisa sobre obras ocidentais que trazem a representação de mulheres que amamentam: Madonnas contemporâneas em série fotográfica: relações estéticas e produção de sentidos sobre a maternidade.

[5] Movimento da Igreja Católica em resposta à Reforma Protestante que objetivava combater a expansão do protestantismo no séc. XVI e reafirmar o poder e a influência da Igreja Católica na Europa.

[6] Os trabalhos fotográficos pessoais de longo termo de Elinor Carucci mereceriam um artigo próprio. Disponível em https://www.elinorcarucci.com/mother.html. Acesso em 29 ago. 2025.

[7] «No futuro, os úteros artificiais poderão substituir as incubadoras, pois imitam o ambiente natural do útero feminino». O texto está disponível no site de Lisa Mandemaker sobre a participação de seu projeto de útero artificial, Semana de Design Holandesa, 2018. Disponível em https://www.lisamandemaker.com/work-1/artificial-womb. Acesso em: 7 abr. 2025.

[8] A artista Catherine Opie ganhou em 2024 uma exposição no Masp, SP: Catherine Opie: o gênero do retrato, na qual centenas de suas obras foram expostas ao lado de obras do acervo do Museu.