DOI: 10.29112/ruae.v10i2.2567

Dossier

Semana Mundial de Aleitamento Materno: presenças e ausências na campanha brasileira

World Breastfeeding Week: presences and absences in the Brazilian campaign

Semana Mundial de la Lactancia Materna: presencias y ausencias en la campaña brasileña

Camylla Sales da Silva Santana1 ORCID: 0000-0003-3320-5443

Marcos Antonio Ferreira do Nascimento2 ORCID: 0000-0002-3363-4232

 Doutoranda em Saúde Coletiva, Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz. camyllasales@hotmail.com.

2 Pesquisador em Saúde Pública, Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz. marcos.nascimento@fiocruz.br.

Resumo

Aumentar os índices de aleitamento exclusivo até seis meses e continuado até dois anos ou mais é meta de uma série de órgãos de saúde e governos, entre eles o do Brasil. Discursos biomédicos buscam demonstrar que as vantagens do aleitamento são universais e impactam positivamente a saúde pública, a economia e o meio ambiente. Contudo, a amamentação é uma prática atravessada por fatores biológicos, sociais, culturais, econômicos e políticos e sujeita a contextos e experiências diversas. Uma das estratégias utilizadas para aumentar os índices de amamentação é a realização da Semana Mundial de Aleitamento Materno, em que são produzidos materiais que buscam sensibilizar a sociedade para a importância do incentivo, apoio e proteção à amamentação. Nosso objetivo é analisar os materiais de comunicação produzidos ao longo de mais de 30 anos, focando em suas ausências e presenças. Partimos do pressuposto que a comunicação é capaz de influenciar percepções e práticas e que as campanhas constroem significados, exigindo atenção ao contexto e à diversidade dos seus interlocutores. Realizamos uma análise dos materiais a partir de referências do campo da comunicação em saúde, em diálogo com perspectivas sobre economia do cuidado. Inicialmente concentrados em mães e bebês, aos poucos os materiais incluíram pais, profissionais de saúde e maior diversidade étnico-racial, com destaque recente para pessoas com deficiência e famílias em situação de vulnerabilidade. Apesar dos avanços em representatividade, há desafios quanto à responsabilização excessiva das mulheres e à ausência de famílias que fogem ao modelo cisheteronormativo.

Palavras-chave: amamentação, Semana Mundial de Aleitamento Materno, comunicação em saúde.

Resumen

Aumentar las tasas de lactancia materna exclusiva hasta seis meses y la lactancia materna continua hasta dos años o más es un objetivo de varias agencias de salud y gobiernos, incluido Brasil. El discurso biomédico busca demostrar que los beneficios de la lactancia materna son universales e impactan positivamente la salud pública, la economía y el medio ambiente. Sin embargo, la lactancia materna es una práctica influenciada por factores biológicos, sociales, culturales, económicos y políticos, y sujeta a diversos contextos y experiencias. Una de las estrategias utilizadas para aumentar las tasas de lactancia materna es la Semana Mundial de la Lactancia Materna, durante la cual se producen materiales para concienciar sobre la importancia de fomentar, apoyar y proteger la lactancia materna. Nuestro objetivo es analizar los materiales de comunicación producidos durante más de treinta años, centrándonos en su presencia y ausencia. Partimos de la base de que la comunicación puede influir en las percepciones y prácticas, y que las campañas construyen significados, lo que requiere atención al contexto y la diversidad de sus interlocutores. Analizamos los materiales con base en referencias del campo de la comunicación en salud, en diálogo con perspectivas sobre la economía del cuidado. Inicialmente centrados en madres y bebés, los materiales fueron incorporando de forma gradual a padres, profesionales de la salud y una mayor diversidad étnica y racial, con un énfasis reciente en personas con discapacidad y familias en situación de vulnerabilidad. A pesar de los avances en la representación, persisten los desafíos relacionados con las excesivas responsabilidades de las mujeres y la ausencia de familias que se desvíen del modelo cisheteronormativo.

Palabras clave: lactancia, Semana Mundial de la Lactancia Materna, comunicación en salud.

Abstract

Increasing exclusive breastfeeding rates for up to six months and continued breastfeeding for up to two years or more is a goal of several health agencies and governments, including Brazil's. Biomedical discourse seeks to demonstrate that the benefits of breastfeeding are universal and positively impact public health, the economy, and the environment. However, breastfeeding is a practice influenced by biological, social, cultural, economic, and political factors and subject to diverse contexts and experiences. One of the strategies used to increase breastfeeding rates is World Breastfeeding Week, during which materials are produced to raise awareness of the importance of encouraging, supporting, and protecting breastfeeding. We aim to analyze the communication materials produced over 30 years, focusing on their presence and absence. We assume that communication can influence perceptions and practices and that campaigns construct meanings, requiring attention to the context and diversity of their interlocutors. We analyzed the materials based on references from the field of health communication, in dialogue with perspectives on the care economy. Initially focused on mothers and babies, the materials gradually included fathers, healthcare professionals, and greater ethnic and racial diversity, with a recent emphasis on people with disabilities and families in vulnerable situations. Despite advances in representation, challenges remain regarding the excessive responsibilities of women and the absence of families that deviate from the cisheteronormative model.

Keywords: breastfeeding, World Breastfeeding Week, health communication.

Recebido: 19/042025

Aceito: 09/092025

Introdução

Em virtude dos inúmeros benefícios associados ao consumo de leite humano e à prática da amamentação, o aleitamento materno costuma ser apontado como a medida de saúde pública que, isoladamente, mais impactaria os indicadores de saúde, uma vez que reduz a mortalidade infantil em menores de 5 anos e protege o bebê e a mãe de uma série de agravos à saúde.

Entretanto, os avanços do conhecimento científico neste campo não têm sido suficientes para as taxas de aleitamento alcançarem as metas estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras entidades, indicando a existência de um paradoxo entre tais achados e o aumento dos índices de aleitamento. Há muitos anos, como estratégia para ampliação desses números, investe-se em campanhas articuladas internacionalmente que buscam incentivar, proteger e apoiar a amamentação.

Questionamos, entretanto, o alcance e a efetividade dos discursos presentes nessas campanhas. A partir de uma perspectiva socioantropológica no campo da saúde coletiva, nos perguntamos: quais são as famílias representadas nessas campanhas e que ausências são percebidas nos materiais de divulgação que utilizam, e consequentemente, como dialogam com o público alvo que se pretende alcançar? O texto se divide em três seções: a primeira busca tecer um panorama acerca dos discursos sobre amamentação; a segunda apresenta a Semana Mundial de Aleitamento Materno (SMAM) como importante estratégia de comunicação em saúde para a discussão; e, por fim, a terceira seção apresenta uma análise das campanhas, tomando como referência o diálogo com a economia do cuidado.

O discurso médico-científico sobre a amamentação: um breve panorama

O aleitamento materno[1] tem sido considerado o padrão ouro para alimentação de bebês e tratado como prioridade pelo governo brasileiro. Estudos indicam que sua qualidade é superior à de outros alimentos, ao leite de outras espécies e às fórmulas lácteas, substitutivas ideais do leite humano em sua ausência. De acordo com recomendações de órgãos de saúde, deve ser exclusivo até os seis meses de idade e continuado até os dois anos ou mais, sem tempo máximo determinado para sua duração. Protege mãe e bebê de uma série de agravos à saúde, funcionando como fator de proteção para doenças e comorbidades em curto, médio e longo prazo, além de impactar na redução da mortalidade infantil (Brasil, 2015; Sociedade Brasileira de Pediatria, 2018).

Aumentar os índices de aleitamento está alinhado ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que compõem a Agenda 2030 das Nações Unidas, configurada como um pacto global que envolve os países signatários em direção a um futuro mais saudável e sustentável, com menos desigualdades e injustiças. Com esta finalidade, seus objetivos abarcam ações que buscam melhorar condições de saúde, erradicar a pobreza, aumentar a equidade de gênero, a proteção ambiental e climática e vários outros. A amamentação é uma prática complexa que se relaciona de maneira direta e indireta com vários desses ODSs.

Cesar Victora destaca que os resultados obtidos na coorte realizada por seu grupo de pesquisa em Pelotas - RS indicam que o aumento nos índices de aleitamento contribui para diminuição dos gastos com saúde. Os achados referentes ao aumento da inteligência e produtividade contribuem para o desenvolvimento social do país, de modo que tal prática precisa ser estimulada por políticas públicas, uma vez que seu aumento pode ajudar a melhorar a posição do Brasil no cenário sanitário internacional (Garcia, 2016) configurando o aumento dos índices de aleitamento como pauta prioritária para a nação.

Conceituada por Almeida e Novak (2004) como um híbrido de natureza e cultura, a amamentação é uma prática muito influenciada socioculturalmente, tendo sofrido várias modificações ao longo da história da humanidade. Todos os condicionantes sociais, econômicos, políticos e culturais envolvidos fizeram com que o aleitamento se tornasse um ato regulável pela sociedade e possível de ser caracterizado como um bem social compartilhado. Porém, apesar da comprovação científica acerca de suas vantagens e de sua ampla divulgação, os índices de amamentação exclusiva seguem abaixo do esperado, enquanto as taxas de desmame precoce continuam elevadas, indicando um desencontro entre o avanço do conhecimento científico sobre o tema e da amamentação como uma prática socialmente construída.

De acordo com o discurso médico-científico, muitos são os benefícios associados à amamentação e inúmeros os estudos que os comprovam ou reforçam. É frequente que o não alcance das metas recomendadas seja atribuído ao desconhecimento por parte das famílias, em especial das mães, de suas vantagens e à falta de apoio para amamentar, tendo esta ausência de suporte aparecido como um dos focos das campanhas relacionadas ao tema. Nos últimos anos, a discussão sobre maternidade e amamentação tem se intensificado no Brasil, predominantemente orientada por uma perspectiva biomédica e prescritiva. No entanto, há narrativas que problematizam esse enfoque e se propõem a pensar o aleitamento a partir de outros olhares.

Outros discursos possíveis sobre amamentação: problematizando o discurso biomédico

No Brasil, a expressão «cultura do desmame» é conhecida principalmente no campo do ativismo em prol da amamentação e se refere ao conjunto de práticas, crenças, normas sociais e pressões que, tomadas como naturais, acabam por favorecer o desmame precoce, seja por meio do incentivo ao uso de bicos artificiais e fórmulas lácteas ou pela desvalorização do aleitamento, como ocorre quando há certo constrangimento para que mulheres amamentem em público ou o questionamento acerca da capacidade do leite humano de alimentar adequadamente o bebê. Porém, ao opor à essa cultura àquilo que é tido como «naturalizado», corre-se o risco de simplificar a complexidade do processo de amamentar, que envolve aspectos subjetivos, históricos, econômicos e institucionais, revelando tensões entre o biológico e o social e exigindo uma abordagem crítica e contextualizada do tema.

Para Hernandez e Victora (2018) a amamentação é frequentemente operada a partir de uma dicotomia entre natureza e cultura, que atribui a esta a responsabilidade pelos baixos índices de aleitamento. É como se a cultura se opusesse às características orgânicas atribuídas à natureza, onde o aleitamento no peito é o esperado, desconsiderando toda a complexidade deste processo.

As autoras partem de uma perspectiva antropológica e problematizam o viés biologizante assumido pelas orientações que envolvem o que chamam de biopolíticas globais de amamentação e o fazem recorrendo ao conceito foucaultiano de biopolítica, que, afirmam ser assumido por várias instituições e atores, formando uma ampla e diversificada rede defensora do tema a partir desta lógica biologicista.

Destacam que as práticas desenvolvimentistas presentes no pós-guerra associavam crescimento econômico com industrialização e modernização, foi neste período que a indústria de substitutos do leite humano ganhou força e chegou aos países considerados subdesenvolvidos, onde teve forte impacto no aumento da mortalidade infantil, em grande parte por causa da preparação inadequada das fórmulas lácteas e da dificuldade no acesso à água potável para esse fim.

Inicialmente, o incentivo global ao aleitamento foi pensado a partir de sua importância no combate à fome e à desnutrição infantil. Entretanto, com o passar dos anos, essas biopolíticas foram modificadas e no contexto atual consideram também as escolhas e o engajamento individual, inclusive pela via do empoderamento feminino, ao apresentarem tal prática como resultado da autonomia da mulher sobre seu corpo, alinhados ao governo de si. Destacam que «a amamentação é uma prática tão natural quanto política, econômica e social» e que, portanto, uma dessas dimensões não deveria ser priorizada em detrimento de outra (Hernandez e Victora, 2018, p. 9) como costuma ocorrer em virtude da força e poder do discurso biomédico.

A OMS destaca a amamentação como direito humano e aponta a necessidade de tal prática ser protegida da indústria de substitutos do leite humano, que tem grande força econômica e utiliza-se de subterfúgios enganosos para fazer propaganda de seus produtos. Alcança lucros exorbitantes e crescentes a cada ano, ao apostar principalmente na vulnerabilidade das famílias, por vezes fragilizadas em virtude da chegada de um bebê e de todas as mudanças advindas com ele e com a entrada na parentalidade (Grummer-Strawn et al., 2017).

É alinhada a essa perspectiva que podemos pensar na amamentação como direito reprodutivo, considerando que a mulher pode decidir como utilizar o seu próprio corpo, neste caso à serviço da nutrição do seu bebê e, justamente por ser capaz de produzir um alimento completo para este fim, conseguiria se opor a milionária indústria da fórmula infantil (Nucci, 2024).

Trata-se de um tema complexo, permeado de nuances e atravessamentos. Ao mesmo tempo em que os órgãos de saúde, representados principalmente pelos profissionais da linha de frente, fazem uso das campanhas de incentivo à amamentação e impõem normas e imperativos sobre essa prática, reforçam discursos que envolvem o corpo feminino e atribuem às mulheres a responsabilidade exclusiva pelo aleitamento.

Cassidy e El-Tom (2015) chamam atenção para as contradições e conflitos culturais que envolvem o aleitamento materno ao redor do mundo e recorreremos a alguns dos exemplos por elas apresentados para ilustrar tal complexidade. Embora as evidências científicas destaquem o valor nutricional e protetivo do colostro (leite inicial geralmente presente logo após o nascimento do bebê, antes da apojadura e descida do leite maduro), em diversas culturas ele é descartado por ser considerado inadequado para os bebês, principalmente por seu aspecto físico: consistência densa e pegajosa e coloração que varia entre alaranjada, amarelada e transparente. Além disso, o tempo de aleitamento exclusivo ou complementar, bem como a duração e os intervalos entre as mamadas, são orientações que se modificaram ao longo do tempo.

Enquanto no Brasil falamos de uma «cultura do desmame» sempre presente, elas apontam a nossa expertise no tema, os avanços alcançados na redução da mortalidade infantil e nosso papel enquanto coordenador da maior rede de bancos de leite do mundo. Discutem também as dificuldades da doação de leite para os praticantes do islamismo, uma vez que o compartilhamento de tal fluído corporal para eles é capaz de gerar parentesco e interferir nas relações sociais estabelecidas, inclusive as que envolvem práticas sexuais.

Com relação à amamentação e HIV, apontam a complexidade de oferecer orientações universais quando temos realidades tão distintas no mundo, pois amamentar pode ser a melhor opção em virtude de sua acessibilidade para mulheres que vivem com HIV em alguns países africanos, por exemplo, enquanto para as mulheres residentes nos Estados Unidos a melhor opção, neste caso, seria oferecer fórmula láctea. Isso considerando principalmente as necessidades nutricionais das crianças e o risco de transmissão vertical do vírus em virtude das condições sociais e econômicas do país (Cassidy & El-Tom, 2015).

Martinez-Silveira et al. (2019) analisaram revisões sistemáticas como fontes de evidências científicas para a formulação de recomendações oficiais sobre as repercussões da amamentação na saúde da criança no Brasil, Estados Unidos e Canadá e concluíram que, algumas das revisões utilizadas como referência bibliográfica para embasar as políticas de incentivo ao aleitamento no Brasil e no mundo, entre elas as recomendações do OMS e do Ministério da Saúde (MS), apresentam resultados contraditórios ou inconclusivos quanto aos seus benefícios e à duração ideal.

Além disso, observaram que o número de revisões utilizadas para embasar tais recomendações é reduzido, quando comparado ao universo de revisões existentes sobre o tema. Sendo comum recomendações oficiais, se utilizarem de outras recomendações como referência bibliográfica, em vez de recorrer a revisões com melhor qualidade metodológica. Sinalizam ainda que em alguns estudos os resultados encontrados eram insuficientes para a sua recomendação nos moldes da política pública. Valorizam o fato de as revisões sistemáticas serem utilizadas para a formulação de recomendações no campo da saúde, uma vez que consistem no padrão ouro para a produção de evidência científica, mas questionam a qualidade metodológica de algumas e a interferência disso na elaboração de recomendações oficiais que, por sua vez, influenciam as ações de saúde em nível individual ou coletivo. Por fim, questionam se as evidências utilizadas seriam suficientes para embasar as recomendações ainda atuais.

Podemos perceber como os discursos e as orientações que envolvem o aleitamento são variados, complexos e por vezes divergentes. Uma série de ambiguidades envolvem o leite humano e a prática da amamentação. Enquanto o discurso biomédico foca nos benefícios do leite enquanto produto e da prática do aleitamento para mães, bebês e toda a sociedade o discurso socioantropológico, a partir de uma perspectiva feminista, olha para as variantes culturais e à agência das mulheres e suas diferentes formas de organização, inclusive tendo em vista o trabalho envolvido no ato de amamentar.

Amamentação e economia do cuidado

Considerando as campanhas de incentivo ao aleitamento e as políticas públicas que envolvem sua promoção, proteção e apoio, observamos que há uma responsabilização da família, sobretudo da mãe, para que o aleitamento aconteça de forma exclusiva nos primeiros seis meses e complementar até pelo menos os dois anos. Entretanto, o direito à licença-maternidade no Brasil, para a maioria das mulheres, é de apenas quatro meses. Muitas creches, cujo número de vagas é insuficiente para atender a demanda das famílias, não aceitam oferecer leite materno para seus alunos. São indicativos de uma contradição e fragmentação nas políticas públicas que comprometem o alcance das recomendações oficiais. Além disso, contamos com um grande número de mulheres inseridas no mercado informal de trabalho e, portanto, sem acesso a esses direitos. Esse cenário sobrecarrega as mulheres, que são as principais responsáveis pelo cuidado.

Questionamos os discursos que consideram a amamentação como uma decisão da mulher ou da família e apontamos a necessidade de dar mais atenção às interferências sociais, econômicas e políticas que a atravessam e determinam. É preciso problematizar o fato desta ser uma prática diretamente associada ao amor materno, havendo um silenciamento das dificuldades envolvidas no processo (Kalil, 2016). Entre elas podemos citar as questões de manejo, que envolvem fissuras, mastites e ingurgitamentos, por exemplo, e as ligadas à prática do aconselhamento, que por vezes não consideram a mulher e suas necessidades ao oferecer orientações que sejam adequadas a cada caso.

O campo da amamentação é prescritivo e normativo, há um modo de fazer que rege as orientações e pouco espaço para ajustes caso as famílias não sigam o esperado. Há uma culpabilização, principalmente da mãe, quando esta prática não acontece dentro dos padrões orientados. Entretanto, lembramos que ainda que o corpo da mãe seja central quando pensamos em aleitamento, não se restringe a ele. Como nos aponta Iaconelli (2020), o corpo oferece possibilidades, riscos e desafios quando consideramos a construção dos laços de parentesco. Nucci e Fazzioni (2021) destacam, inclusive, o lugar da amamentação cruzada na organização de uma rede de cuidados que é muito necessária às famílias em condições socioeconômicas menos favorecidas. O que é totalmente negligenciado pelas políticas públicas que reprovam tal prática e ignoram a dificuldade de acesso aos substitutos do leite humano e a incompatibilidade entre as orientações e sua realização. É o que ocorre com mulheres que têm apenas quatro meses de licença-maternidade, mas devem amamentar exclusivamente por pelo menos seis meses.

A «romantização» da amamentação e do trabalho de cuidado e manutenção da vida, que engloba o aleitamento e que é essencial para a vida em sociedade do modo como a conhecemos, mantém na invisibilidade essas ações realizadas majoritariamente por mulheres. Considerando a amamentação como direito da criança e da mãe, precisamos pensar no que é necessário para que o mesmo seja garantido. Com isso em vista, vamos nos debruçar sobre as campanhas de promoção da amamentação a partir do campo da comunicação e saúde.

O conteúdo transmitido nessas campanhas se dá por meio da representação de um recorte da realidade social e ao mesmo tempo em que refletem essa realidade, essas representações têm o potencial de transformá-la. É como afirma Kalil (2016), os discursos veiculados nas campanhas, ao mesmo tempo que expressam as contingências de seu contexto histórico, também possuem a capacidade de modificá-lo.

Comunicação e saúde

Os modelos de comunicação são fundamentais para pensarmos o campo da saúde e é na intersecção entre os dois que temos indícios de como são construídos e disseminados esses discursos. A escolha dos temas, palavras e imagens tem um caráter ideológico e pode ser um indicativo de quais posicionamentos e concepções estão sendo consideradas, além de demonstrarem quais temas e agendas estão ganhado destaque (Araújo & Cardoso, 2007).

As estratégias de comunicação são fundamentais para a divulgação de práticas em saúde, elas fornecem informações baseadas em conhecimento científico e são capazes de alterar percepções e ações. Araújo e Cardoso (2007) destacam a importância de a comunicação e saúde estar vinculada a um projeto ético de sociedade e, portanto, considerar as relações de poder existentes entre diferentes grupos sociais, se comprometendo com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), tão relevante para nossa organização enquanto coletividade. Para isso, é preciso considerar a necessidade de uma distribuição mais equitativa de informações, o que é capaz de alterar positivamente as condições de saúde das pessoas, e no caso específico, os desfechos ligados ao aleitamento. Elas destacam que a comunicação não se limita a transmissão de informações de saúde para a população com vistas ao alcance de metas e objetivos da área, mas se configura como um campo onde ocorrem tensões e disputas, que privilegiam algumas concepções e temas em detrimento de outros.

No campo do aleitamento materno, podemos, a partir das estratégias de comunicação utilizadas pelas campanhas, verificar quem são os sujeitos por elas contemplados como destinatários e como isso pode impactar tanto a assistência à saúde que lhes é oferecida, quanto à circulação de determinadas práticas sociais, na medida em que tais ações são capazes de influenciar percepções e costumes relacionados à amamentação. Cabe destacar que a elaboração do material publicitário utilizado na SMAM não conta com participação do público a que se destina e não há estudos de efetividade das mesmas. De acordo com a investigação feita por Kalil (2016), o Ministério da Saúde trata a amamentação como um tema não controverso e, por isso, não avalia os materiais das campanhas nem sua efetividade, considerando que seu objetivo é apenas reforçar a importância da prática.

Fazzioni e Kalil (2024), ao investigarem as representações e discursos sobre gênero, saúde e amamentação no Brasil contemporâneo discorrem sobre o lugar da comunicação nesse processo e, a partir dos postulados teóricos de Foucault, apontam a relação entre discurso e estrutura social, destacando que se influenciam e constroem mutuamente, mantendo uma dialética entre si. Elas chamam atenção para as contribuições dos estudos de gênero e apontam o quanto as construções acerca da maternidade são culturais e reforçadas pelo campo da comunicação e saúde: ainda pautadas no ideário da «boa mãe», desconsiderando as experiências de quem vivencia a amamentação. O que faz parecer que os discursos oficiais não contemplam a realidade das mulheres quando elas não conseguem manter suas práticas de aleitamento dentro das recomendações oficiais, fazendo com que recorram aos espaços informais de troca com outras mães, onde encontram acolhimento e apoio.

É Elisabeth Badinter (1985, 2011) que problematiza o «mito do amor materno» e aponta a centralidade da amamentação para as representações que envolvem a maternidade atualmente. A «boa mãe» é a que coloca as necessidades e interesses dos filhos acima das suas, se dedicando ao seu bem estar e abrindo mão de si e de suas próprias necessidades. Nesse contexto, ela aponta como a amamentação reforça o papel da mulher como mãe dedicada e submissa e critica a romantização e a idealização da amamentação como uma obrigação natural e moral da mulher, questionando a naturalização do instinto materno, construído social e historicamente. Ao longo da história muitas mulheres não amamentaram seus filhos, houve época em que recorrer às amas de leite é que era o natural, o que indica que está não é uma prática universal. Em seu livro mais recente, ela inclusive argumenta que o discurso pró-amamentação ignora a autonomia da mulher em nome de ideais que são biologizantes e moralistas e faz uma dura crítica aos que fazem da amamentação um imperativo moral e não uma escolha, entre elas algumas organizações que mencionaremos adiante e as próprias campanhas de promoção do aleitamento (Badinter, 2011).

É a partir dessa perspectiva e considerando a dialética entre os discursos presentes nas políticas e a estrutura social que nos debruçamos sobre os cartazes da SMAM. Eles consistem em materiais educativos e seu objetivo é sensibilizar a população para o tema anual, que versa sobre a promoção, proteção e apoio ao aleitamento. Se assim como Araújo e Cardoso (2007) entendemos a comunicação essencialmente como uma relação, precisamos compreender também que ela envolve ao menos dois atores ou instâncias, incluindo seus interlocutores e a quem se direciona, que são afetados pelos discursos por ela produzidos ao mesmo tempo em que os produzem e alteram.

Elas destacam a importância de considerar o contexto em que a comunicação ocorre, uma vez que, para que ela se efetive, é necessário um compartilhamento prévio de símbolos e informações. Isso reforça a necessidade de compreender a comunicação para além de uma abordagem meramente instrumental. Uma vez que sentidos e significados não são dados de modo prévio, mas construídos nas práticas discursivas, que também se manifestam por meio das campanhas. Ademais, os signos e símbolos utilizados não são escolhidos de forma aleatória, mas fazem parte intencional da mensagem que se deseja transmitir.

Nesta mesma direção, Quirino (2017) se debruça sobre materiais de mídia que indica «comporem um setor específico no campo da saúde pública, visam não apenas transmitir, publicar e divulgar, mas construir, regular, normatizar e determinar as maneiras pelas quais os sujeitos devem conduzir as suas vidas» (p. 85). Para ele, os materiais que têm como objetivo divulgar uma política específica, e aqui tratamos do incentivo ao aleitamento, se constituem também como estratégias de governo da vida.

Assim. sendo inspirados nas reflexões sobre Kalil (2016) e Quirino (2017) identificar quem são e como estão representados os sujeitos nas campanhas nos oferece pistas para compreender mais sobre as presenças e ausências observadas nessas cenas e o que elas parecem comunicar.

Apresentando a Semana Mundial de Aleitamento Materno

A SMAM foi criada pela World Alliance for Breastfeeding Action (WABA ‘Aliança Mundial para Ação em Aleitamento Materno’), fundada em 1991 no bojo da Declaração de Innocenti[2] com objetivo de apoiar, promover e proteger o aleitamento materno. Abriga organizações, pesquisadores, profissionais de saúde e algumas redes, como a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Rede IBFAN), a La Leche League Internacional e a Associação Internacional de Consultores em Lactação com apoio do Unicef, da OMS e da Organização Pan-Americana de Saúde. A SMAM acontece no Brasil desde 1992 e temos mais de 30 campanhas realizadas. O primeiro tema de trabalho envolveu a Iniciativa Hospital Amigo da Criança e após esse, inúmeros outros foram trabalhados, com os mais recentes destacando a importância de incentivo e apoio para que o aleitamento ocorra a contento.

Anualmente, a WABA propõe um tema para a World Breastfeeding Week (WBW), aqui chamada de Semana Mundial de Aleitamento Materno e os países signatários têm autonomia para realizarem as adaptações que julgarem pertinentes,[3] considerando o seu próprio contexto. A SMAM tem quatro eixos fundamentais: informar as pessoas sobre a importância de proteger a amamentação; apoiar a amamentação como uma responsabilidade de saúde pública; realizar articulação com indivíduos e organizações para maior alcance e impacto de suas ações; e potencializar ações que protegem o aleitamento materno com objetivo de melhorar a saúde coletiva.

Acontece entre os dias 1º e 7 de agosto, tendo início com o Dia Mundial da Amamentação, celebrado no dia primeiro. O mês é inteiramente dedicado à promoção do aleitamento materno e também conhecido como Agosto Dourado, pela associação ao padrão ouro de qualidade atribuído ao leite humano, considerado inigualável e insubstituível. No Brasil, o Mês do Aleitamento Materno foi instituído por lei do Congresso Nacional em 2017. Durante esse período, é comum que prédios públicos federais sejam iluminados na cor dourada, e que laços dourados se tornem presença constante nos serviços e ações de saúde, especialmente como adorno nas vestimentas dos profissionais.

A campanha ressalta a complexidade do processo de amamentação e busca conscientizar tanto profissionais de saúde quanto a população e outros atores acerca dos seus benefícios e da importância do envolvimento de todos. Desde 2016 o tema da SMAM está alinhado aos ODS e a Agenda 2030, que envolve tanto os governos quanto à iniciativa privada e a sociedade civil, englobando as dimensões social, ambiental e econômica e destacando a ligação entre o aleitamento e a sobrevivência, saúde e bem estar de mulheres, crianças e nações. Dentro deste marco político, em 2018 uma resolução da Assembleia Mundial da Saúde reforçou a importância da SMAM como estratégia fundamental para a promoção do aleitamento materno em âmbito global.[4]

Buscando maior compreensão sobre as produções e campanhas relacionadas ao tema, Kalil (2016) desenvolveu tese em que investigou os materiais sobre aleitamento produzidos pelo MS, entre eles cartilhas e publicações utilizadas na SMAM até 2014. De acordo com ela, o principal objetivo da SMAM é aumentar as taxas de aleitamento materno exclusivo e continuado. Para isso, se produzem diversos materiais, incluindo cartazes, folders, banners, vídeos, propagandas de televisão e rádio e mais recentemente posts para as redes sociais. Entre eles estão aqueles destinados aos profissionais, que utilizam linguagem técnica e contém conteúdo formativo e os destinados à população. São produzidos por encomenda do MS à agências de publicidade e encaminhados para divulgação via estados e municípios. Nos últimos anos, com o amplo alcance das redes sociais, também são amplamente compartilhados por ativistas da amamentação, que muitas vezes produzem seus próprios materiais e conteúdos.

As campanhas da SMAM foram inicialmente realizadas pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e posteriormente passaram à responsabilidade do MS, responsável pela adaptação do tema, elaboração e distribuição dos materiais. A semana tem adesão de organismos internacionais e da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, Secretarias de Saúde Estaduais e Municipais, Hospitais Amigos da Criança, Sociedades de Classe e ONGs. Todos os temas da WBW e suas adaptações estão disponíveis para consulta no site da Rede Global de Bancos de Leite Humano (rBLH-Brasil), entretanto, não foi possível localizar os cartazes anteriores a 1998 ou saber se este era um artifício utilizado no período. A partir de 1999 os cartazes e outros materiais estão disponíveis tanto na página da rBLH-Brasil quanto da SBP, temos então um universo de 26 campanhas que utilizamos para nossa investigação.

A SMAM conta com vários materiais, entre eles vídeos curtos (até 30 segundos), folders e materiais destinados à profissionais de saúde, empresários e mais uma variação de públicos e itens, nem sempre presentes em todos os anos. Foi possível localizar o cartaz ou a imagem de capa do folder em todas as campanhas a partir de 1999. Ambos têm formato parecido e contém informações e orientações sobre aleitamento, seguindo o mesmo padrão: geralmente trazem uma mulher amamentando um bebê e por escrito o tema do ano da SMAM. Consideramos principalmente os cartazes para nossa análise, cabendo destacar que esta é a peça mais difundida da campanha, a que costuma estampar as unidades de saúde e ter ampla divulgação. Eventualmente recorremos a outro material em busca de detalhes que possam complementar nossa discussão.

Buscamos compreender quais elementos estavam presentes nos cartazes, observando quem são as pessoas e o plano de fundo da cena, tentando perceber o que a imagem tenta comunicar. Queremos saber quem são as pessoas representadas, considerando os marcadores sociais da diferença e, de algum modo, tomando como inspiração o trabalho realizado por Kalil (2016) com relação à amamentação nos discursos oficiais. Para ela, há ampla oferta de informação sobre o tema ao mesmo tempo em que se observa a ausência de uma abordagem que considere toda a sua complexidade. Considerando a impossibilidade de analisar todos os cartazes neste espaço-tempo e a similaridade entre muitos deles, selecionamos aqueles que acreditamos apresentarem elementos que em alguma medida os distinguem dos demais. Sobre eles discorreremos a seguir.

Os discursos presentes nos cartazes da Campanha

As campanhas realizadas entre 1999 e 2009 foram estreladas exclusivamente por figuras públicas conhecidas pela população, sobretudo por sua presença na televisão aberta, principal meio de comunicação da época. Em sua maioria, tratava-se de atrizes com filhos pequenos que ainda mamavam, embora algumas cantoras também tenham participado. Nomeadas como «madrinhas» da campanha, assumiam o compromisso de divulgar os benefícios do aleitamento materno e de participar de uma série de ações ao longo de todo o ano, até serem substituídas na campanha seguinte (Kalil, 2016). Em todos os cartazes as mulheres e os demais participantes estão sorridentes, admirando o ato de amamentar e em ambientes aparentemente tranquilos, bem diferente de como costuma ser a amamentação no cotidiano. Nos oito anos iniciais da campanha, apenas mulheres e seus bebês estampam os cartazes, ignorando a importância do apoio de outras pessoas a esta prática.

Os cartazes destacam o slogan da campanha e trazem imagens que de algum modo se relacionam com o tema e o contexto da época. Por exemplo, em 1999, o texto «Amamentar é educar para a vida», tema do ano, seguido de «Vamos reaprender!» se sobressai na cena, sinalizando a necessidade dos bebês serem amamentados no peito. O período era de aumento nos índices de aleitamento e de consolidação e ampliação da IHAC, que segue uma série de regras protetoras da amamentação, entre elas o não uso de bicos artificiais (chupetas e mamadeiras), comum em muitas maternidades à época.

Em 2005 (Figura 1), cujo tema foi «Amamentação e introdução de Novos Alimentos a partir dos 6 meses de Vida», a madrinha da campanha de 2004, cujo slogan foi Amamentação Exclusiva: Satisfação, Segurança e Sorrisos retorna, dessa vez amamentando seu bebê visivelmente maior e ao lado de outra mulher que amamenta um bebê pequeno. A imagem chama atenção para a temporalidade da amamentação.

Figura 1: Cartaz SMAM 2005

Fonte: Rede Global de Bancos de Leite Humano – Fiocruz. https://rblh.fiocruz.br/sites/rblh.fiocruz.br/files/usuario/8/cartaz_2005_0.jpg

Já em 2008, o tema «Amamentação: Participe e Apoie a Mulher», a imagem da avó é incorporada como apoio à lactante. Até esse ano, os cartazes mantinham uma estética semelhante: mulheres sentadas, amamentando em cenários de fundo neutro, olhando para a câmera ou para o bebê, sem a presença de elementos visuais marcantes. Em 2009, sob o slogan «Amamentação em todos os momentos. Mais carinho, saúde e proteção» percebe-se uma mudança na composição da cena: há um fundo azul com desenhos coloridos que remetem, simultaneamente, ao tempo chuvoso e ensolarado, reforçando que o aleitamento deve ocorrer em qualquer situação.

O ano de 2010 (Figura 2) é o primeiro em que uma mulher desconhecida do público aparece como protagonista, ela está sorridente e amamentando sob os dizeres: «Amamente, dê ao seu filho o que há de melhor». Nas cinco campanhas seguintes, até 2015, se mantém a figura da madrinha ou padrinho (alguns homens, também famosos e cuja paternidade era motivo de especulação da mídia, ocupam esse lugar). E ainda que o padrinho famoso não apareça diretamente nos anos seguintes, a campanha de 2017, por exemplo, tem um artista como padrinho e no folder de divulgação ele é apresentado como apoio à mulher que amamenta, juntamente com profissionais de saúde, familiares, educadores e empresários. Mas o cartaz (Figura 3) é estampado por uma mulher anônima que sorri enquanto olha e amamenta seu bebê, o que ocorreu também no ano anterior, 2016 e mantendo mulheres lactantes e bebês no centro, o que foi alvo de críticas por não reconhecer que a experiência de amamentar necessita de outras pessoas. No ano seguinte, 2018 (Figura 4), temos novamente a participação de uma celebridade no cartaz. Após esse ano, a imagem de uma pessoa pública deixou de ser utilizada. Talvez o MS da saúde tenha abandonado a estratégia de adotar uma madrinha ou padrinho e passado a optar por pessoas comuns, mas não conseguimos localizar informações que justifiquem tal mudança.

Figura 2: Cartaz SMAM 2010

Fonte: Rede Global de Bancos de Leite Humano – Fiocruz. https://rblh.fiocruz.br/sites/rblh.fiocruz.br/files/usuario/8/cartaz_2010.jpg

Figura 3: Cartaz SMAM 2017

Fonte: Rede Global de Bancos de Leite Humano. https://rblh.fiocruz.br/campanhas-nacionais-semana-mundial-de-aleitamento-materno-smam

Figura 4: Cartaz SMAM 2018

Fonte: Rede Global de Bancos de Leite Humano – Fiocruz. https://rblh.fiocruz.br/sites/rblh.fiocruz.br/files/usuario/8/smam2018_cartaz.png

No ano em que um pai aparece pela primeira vez (2007), tanto ele quanto sua companheira, que aparece amamentando o filho do casal recém-nascido, são famosos. Em 2013, um ator cujo trabalho estava bastante em alta posa ao lado da esposa, cada qual com um dos filhos gêmeos no colo. Tratam-se de homens brancos cuja carreira e paternidade eram alvo de curiosidade e que aparecem também sorridentes e simbolizando apoio à mulher. De acordo com as representantes do MS entrevistadas por Kalil (2016), acreditava-se que ter um rosto conhecido pela população, além de chamar atenção para o cartaz, gerava uma identificação. Entretanto, ela aponta que, embora a campanha seja destinada ao público geral, na medida em se escolhe uma celebridade da televisão como protagonista, passa a haver um recorte socioeconômico do público a que se destina, uma vez que a maioria das pessoas que acompanham televisão aberta no Brasil pertence a uma parcela da população com menor poder aquisitivo, e que depende exclusivamente do SUS.

Em todos os cartazes é possível ver uma mulher cisgênero amamentando. Na maioria deles, um bebê pequeno, que aparenta ter menos de seis meses. Poucas delas trazem uma criança mais velha (aparentemente com dois anos ou mais) mamando e quando o fazem chamam atenção para a importância do aleitamento complementar nos maiores de seis meses. Embora a amamentação seja recomendada por dois anos ou mais, isso pode ser indicativo de que o interesse maior está em aumentar esses índices para os bebês menores, o que faz sentido quando consideramos as metas estabelecidas pela OMS e os dados do ENANI (Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021) que mostraram haver pequena diferença entre as taxas de amamentação exclusiva até 6 meses (46 %) e continuada até 12 meses (44 %), ou seja, pode ser que aumentando as taxas de aleitamento no início da vida o bebê seja amamentado por mais tempo enquanto cresce.

Quando Kalil (2016) analisou as cartilhas sobre promoção do aleitamento materno que foram produzidas pelo MS para os profissionais, pôde perceber que nesses materiais a mulher é apresentada como um instrumento que fornece o alimento ideal para a saúde e o desenvolvimento do bebê, não sendo mencionados aspectos de sua individualidade, como suas percepções, sentidos e dores, de modo que há um silenciamento das suas perspectivas sobre o processo. Ela aponta que os discursos são individualizados e atribuem à mulher a responsabilidade pelo sucesso da amamentação, sem considerar suas vivências e sua subjetividade.

Observamos que frequentemente não se fala sobre dificuldades que podem ocorrer durante o período de aleitamento, em seu início ou ao longo do processo, inclusive considerando as especificidades de amamentar uma criança maior de dois anos. Embora isso seja recomendado, é comum ouvirmos sobre o desconforto das mulheres ao amamentar em público e os desafios relacionados ao controle sobre seus corpos. Por tudo isso, o sucesso da amamentação vai depender de uma série de fatores que vão além do seu interesse e desejo, mas muito influenciados pelo meio em que ela está inserida e pelo apoio que recebe, inclusive e talvez principalmente por parte das políticas públicas.

Ainda que seja uma mudança discreta, observamos que nas últimas campanhas a mulher vêm ganhando algum espaço e importância, podemos dizer que ela tem deixado de ser vista apenas como produtora e fornecedora do leite enquanto produto e tem se aberto espaço para que seja ouvida, acolhida e apoiada, o que é ilustrado pelos slogans dos últimos anos e pode também estar contribuindo para aumentar os índices de aleitamento no Brasil.

Esse não é um tema sem disputas e controvérsias, ao investigar percepções e conhecimentos de mães que amamentaram a partir da teoria das representações sociais, Rocha et al. (2010) concluíram que, embora enfrentem desafios sociais e biológicos que dificultam esta prática, a percebem como indicativo de boa mãe e suas representações sobre aleitamento materno se concentraram em três categorias, eram elas: ‘amor materno’, ‘proteção do leite para o bebê’ e ‘benefícios às mães’. Ou seja, para as mulheres participantes desse estudo, amamentar é um ato associado com amor e cuidado, o que se assemelha ao veiculado pelas campanhas.

Badinter (1985, 2011) problematiza essa ideia de amor natural pelos filhos, que estaria presente em todas as mulheres-mães. São consideradas «desnaturadas» aquelas que não exercem a maternidade nos moldes socialmente esperados, o que varia a depender do contexto e do tempo histórico. Para esta autora, tanto a maternidade quanto o instinto materno são construções sociais datadas do século XVIII, que resultam de uma articulação de saberes ligados ao discurso médico, filosófico e político e que foram responsáveis pela produção dos discursos sobre cuidado materno.

De modo semelhante, a associação entre amamentação e amor passa por esse mesmo tipo de construção. Ainda que amamentar seja, para o senso comum, de acordo com o que vimos em Rocha et al (2010) «quase equivalente» a amar, é fruto de um comportamento social e variável ao longo do tempo. Essa associação não existia quando os bebês das famílias mais abastadas eram amamentados por amas de leite, prática socialmente valorizada e acessível apenas às famílias com algum poder aquisitivo, que pagavam por tal serviço ou em outras condições quando consideramos o período de escravização de seres humanos.

Ademais, é importante considerar que amamentar é também trabalho. O trabalho relacionado às atividades de cuidado, necessário para a manutenção da vida (cozinhar, lavar, cuidar, transportar, educar) é o que sustenta a sociedade e permite que o trabalho produtivo e remunerado possa ser realizado. Além disso, podemos pensar na amamentação como um direito, tanto da criança, que tem direito de ser amamentada, quanto da mãe, que tem direito de amamentar o filho, e por isso mesmo é que precisamos de políticas públicas que possibilitem sua efetivação oferecendo condições para que ocorra, e não apenas responsabilizando as mulheres e famílias por isso.

Ainda sobre as campanhas, Nascimento e Santana (2025), ao investigarem a presença paterna na SMAM, observam que é apenas após o ano de 2018 que esta figura tem presença constante nos cartazes. Antes disso, o pai esteve em 2007, 2013 e 2015. Embora o modelo de família considerado ideal seja aquele da família nuclear, composto por pai, mãe e filhos, percebemos como essa ausência pode indicar o afastamento do pai das atividades de cuidado, não sendo ele sequer representado neste processo por muito tempo.

Os autores chamam atenção para a campanha de 2017 (Figura 3), ainda que apresente mais uma vez uma mulher branca com um bebê mamando ao lado do slogan Amamentar: Ninguém pode fazer por você. Todos podem fazer junto com você, seu folder destaca a importância da participação de outros atores, entre eles familiares, educadores, artistas, profissionais de saúde e empresários e destaca o papel do pai e de toda a sociedade para o sucesso da amamentação, enfatizando-a como direito das mulheres e das crianças. O slogan parece também fazer referência à amamentação cruzada, que consiste no ato de uma mulher amamentar o bebê de outra. No Brasil esta prática foi muito comum na época das «amas de leite» e embora ainda ocorra, é fortemente desaconselhada pelo MS sob a justificativa do risco de se transmitirem doenças ao bebê (Nucci e Fazzioni, 2021).

No ano anterior, a licença-paternidade foi prorrogada de 5 para 15 dias, desde que cumpridos os requisitos exigidos pelo programa Empresa Cidadã para aqueles trabalhadores cujo vínculo é regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e para os funcionários públicos. A concessão do benefício da licença-paternidade estendida se faz mediante a entrega de declaração do profissional de saúde informando a participação do pai no pré-natal; em atividades educativas durante a gestação ou visita à maternidade; comprovante do curso online «Pai presente: cuidado e compromisso»[5] oferecido pelo MS por meio de plataformas online. Reservar um espaço para a importância paterna no folder indica que o MS está alinhado ao Marco Legal da Primeira Infância ao incentivar as empresas a ampliarem à licença-paternidade.

Entretanto, trazer os homens-pais para este universo não acontece sem tensões e disputas, uma vez que há dúvidas sobre essa maior aproximação trazer cuidado para mãe e bebê ou provocar mais transtorno ao ambiente familiar, em virtude das questões relacionadas à masculinidade hegemônica e sua associação à violência e afastamento das práticas de cuidado. Tanto que o acesso à licença-paternidade ampliada ocorre mediante à comprovação da participação do pai em atividades formativas à respeito de suas novas funções na família decorrentes da chegada do bebê. É como se para acessar esse benefício/direito o pai tivesse que comprovar sua qualificação para ser um «pai cuidador». Diferentemente da maternidade, que é naturalizada para as mulheres, os homens precisam ser ensinados e qualificados para que possam exercer a paternidade, que se espera que seja ativa, participativa, responsável, além de outras adjetivações.

Embora a maior presença do pai possa indicar uma tendência de valorização dessa figura nos discursos oficiais do MS sobre o aleitamento e a importância de sua participação nessa «cena», os cartazes não se comunicam diretamente com os homens e as mensagens não se direcionam a eles. Aproximar os homens-pais da amamentação, destacar a importância de seu envolvimento com o trabalho de cuidado e apoio à parceira, nos parece um indicativo de como a partir de 2016, ano em que a licença-paternidade foi ampliada, não mais se abriu mão dessa figura. Há uma série de outros cartazes em que atores diversos integram a cena, mas o pai continua presente (Nascimento e Santana, 2025).

A campanha de 2018 (Figura 4) cujo slogan Amamentação é a base da vida traz uma atriz e seu companheiro, ambos aparecem sorrindo e olhando para o bebê que mama. Trata-se de uma família interracial em que a mãe é negra. Anteriormente, apenas em 2001 uma mulher negra havia estrelado a campanha e não havia presença de outras pessoas negras nos cartazes até 2018. Observamos que a partir daquele ano todos têm ao menos uma pessoa negra, seja representando o profissional de saúde ou um dos pais. Destacamos a importância da representatividade deste público considerando que o Brasil possui mais de 55 % de sua população autodeclarada preta ou parda de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística realizado em 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023) que temos percebido um movimento que reivindica maior diversidade e representatividade da população.

Em 2024 o tema Amamentação: apoie em todas as situações (Figura 5) cujo foco foi reduzir as desigualdades no apoio ao aleitamento, chamou atenção para as pessoas com deficiência, sejam elas os bebês (que podem precisar de mais suporte para mamar) ou quem amamenta e pode necessitar de mais auxílio em virtude de suas condições físicas. Ainda assim, uma pessoa com deficiência física aparece representada em apenas um dos três cartazes produzidos e divulgados neste ano. Em anos anteriores, apenas um cartaz era produzido e essa mudança nos chamou atenção, entretanto, não localizamos justificativa oficial para esta escolha. Embora possamos inferir que essa estratégia abarque a representação de um maior número de situações, em alguma medida ofusca a condição de deficiência evidenciando a persistente invisibilização dessa população.

Figura 5: Cartaz SMAM 2024

Fonte: Rede Global de Bancos de Leite Humano – Fiocruz. https://rblh.fiocruz.br/sites/rblh.fiocruz.br/files/usuario/174/tela_de_login_-_campanha_nacional_de_amamentacao_-_1600x900px_.jpg_0.jpg

A amamentação é apresentada como direito da criança, mas também trata de um direito reprodutivo que deve ser garantido, principalmente àqueles que fogem ao padrão social vigente, que costumam ter os piores índices de saúde e por isso mesmo, devem receber o apoio que necessitam. Esse cartaz (Figura 5) apresenta na metade direita a foto da família de maneira ampliada, com foco nos rostos que retratam pais sorridentes, atentos ao bebê que mama. Na metade esquerda, a imagem é reduzida e, olhando com atenção, é possível ver a deficiência nas mãos da mulher que segura o bebê. O mesmo acontece com a foto da mulher amamentando no abrigo, apenas quando a imagem fica mais distante podemos ver que eles estão em um local que parece se destinar à acolhimento temporário.

Diferente de todos os anos anteriores, neste ano são três os cartazes produzidos para a SMAM. Esta campanha aconteceu após a maior tragédia climática do Rio Grande de Sul, que ocorreu no primeiro semestre do ano e deixou milhares de desalojados. Neste ano, «apoiar em todas situações» destacou as crises e emergências, com vistas a reduzir as desigualdades neste apoio e enfatizar a necessidade de se concentrar nos grupos vulneráveis.

Gostaríamos de pontuar que no vídeo da campanha de 2022 aparece uma mulher cadeirante amamentando, no ano seguinte, 2023, outra mulher cadeirante é apresentada como professora e mãe. Em 2024, uma mulher está junto ao companheiro enquanto amamenta uma criança aparentemente maior de um ano e com características físicas sugestivas de Síndrome de Down. Os vídeos apresentam pessoas de diferentes etnias e em distintos espaços, gostaríamos de pontuar isso como um indicativo de que, ainda que muitas coisas se mantenham com formato parecido ao de 30 anos atrás, conseguimos perceber avanços na representatividade e diversidade presentes na SMAM. Mas destacamos também que os vídeos não têm o mesmo alcance dos cartazes, frequentemente espalhados por unidades e serviços de saúde.

Se investigando os cartazes percebemos que apenas nos últimos anos alguns marcadores sociais da diferença são representados, entre eles raça e deficiência, bem como a participação paterna, até o momento não observamos a presença de pessoas transexuais ou de famílias homoparentais, nem mesmo nos vídeos da campanha, que costumam apresentar uma maior variedade de situações e contextos envolvendo a amamentação.

Entretanto, a literatura nos mostra ser possível aos homens trans, desde que mantenham útero e mamas, gestarem e amamentarem. Do mesmo modo, em casais formados por mulheres cis, pode haver dupla amamentação através de protocolos de indução à lactação, os mesmos que podem ser realizados por mulheres trans. Ou seja, as campanhas de amamentação até aqui não são inclusivas e não consideram o direito de todas as pessoas amamentarem, uma vez que a identidade de gênero ou orientação sexual pode interferir no acesso aos serviços de saúde e na assistência recebida.

É o que foi observado por Pereira et al. (2024) ao investigar as experiências e significados da amamentação para homens trans, que escolheram amamentar em virtude dos benefícios do leite humano para a saúde de seus bebês, a despeito das consequências de tal processo para sua masculinidade, uma vez que as mamas e à amamentação são associadas ao universo feminino e que foi necessário manter a interrupção dos hormônios masculinizadores (o que ocorre desde a gestação) por causa do processo de aleitamento.

Já Galvão et al. (2024) aponta, a partir das perspectivas de homens trans usuários de um banco de leite humano e dos profissionais que lhes prestam assistência, os desafios por eles vivenciados em virtude de lacunas educacionais e institucionais, que se associam as questões pessoais de cada profissional e resultam na segregação de homens transgêneros nesses serviços, que como a maioria dos serviços de saúde, são pautados na cisheteronormatividade.

Achados semelhantes estão em Bolissian et al. (2023) ao indicar uma série de mudanças sociais que alteram o padrão heteronormativo vigente e cada vez mais apresentam a possibilidade de pessoas trans exercerem papel parental, embora se observe que os profissionais estão pouco capacitados para atender essas famílias em suas especificidades e apesar de termos uma política de saúde específica para a população LGBT+, ela não contempla discussões que envolvem parentalidade e aleitamento, contribuindo para que esse importante direito reprodutivo fique limitado às pessoas cisgênero.

Todos os trabalhos reforçam a necessidade de reconhecer a diversidade sexual e de gênero quando consideramos os direitos sexuais e reprodutivos e o respeito às diferenças no cuidado em saúde, o que pode interferir nos desfechos relacionados ao aleitamento. Nesta mesma direção de pensar as invisibilidades ligadas ao aleitamento, a Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, lançou no Agosto Dourado de 2024 - que chamou atenção para as desigualdades no apoio à amamentação - à luz da temática da inclusão e diversidade, alguns produtos que destacam às necessidades das pessoas com deficiência, reconhecendo a amamentação como parte de seus direitos reprodutivos.

Uma das cartilhas produzida por Costa et al. (2024) ressalta que a amamentação é direito de todas as pessoas, sendo ainda mais importante para os bebês com maior fragilidade no sistema imunológico, prematuros, com problemas no desenvolvimento e em condições de vida precárias. Chama atenção para o fato de pessoas com deficiência engravidarem tanto quanto pessoas sem deficiência, mas continuarem com os piores indicadores sociais, inclusive os de aleitamento, uma vez que são desencorajadas a amamentar em virtude de nossa sociedade capacitista, que não incentiva nem oferece as condições necessárias para que amamentação ocorra.

As pessoas com deficiência encontram dificuldades no acesso à dispositivos que podem auxiliar o processo de aleitamento, bem como à profissionais qualificados para uma assistência inclusiva, isso é particularmente importante considerando que há um aumento na gestação de crianças com deficiência. Além do pouco reconhecimento do direito à parentalidade, pessoas com deficiência são desencorajadas a amamentar e têm suas capacidades questionadas, assim como é frequente haver dúvidas sobre as possibilidades de desenvolvimento de um bebê com deficiência, o que pode contribuir para um desinvestimento no mesmo e gerar uma interferência negativa. Porém, é por precisarem mais ainda da amamentação e dos benefícios a ela associados pelo discurso médico, que esta prática deveria ser estimulada e protegida. Tecnologias assistivas e técnicas adaptativas podem ser recursos importantes nestes casos, mas com frequência o acesso a elas não ocorre ou é lento demais, atrapalhando o estabelecimento da amamentação (Costa et al., 2024), o que é determinante para seu desfecho.

Considerando a relação dialética entre comunicação e saúde, em que ambas se influenciam e são capazes de alterar cenários e práticas, é fundamental pensarmos nas pessoas com deficiência, sejam os bebês ou as pessoas lactantes e nas condições de acesso à saúde para a população trans, sendo urgente refletir sobre a necessidade de representatividade desse público. Tais silenciamentos contribuem com a dificuldade de acesso ao aleitamento para essas pessoas, que muito necessitam dos benefícios atribuídos ao leite humano e à prática da amamentação.

É comum nos discursos sobre aleitamento que se utilize a expressão «cada gota importa» como um apelo, destacando a importância de manter a amamentação, ainda que fora do modelo ideal (exclusivo até seis meses, sem uso de bicos artificiais e etc.). Entretanto, quando falamos do leite de pessoas com deficiência ou pessoas trans, parece que não vale o esforço a ser empreendido para que elas possam amamentar seus bebês. Embora, paradoxalmente, os bebês com deficiência possam ser particularmente beneficiados com a amamentação, considerando os inúmeros benefícios advindos não apenas do leite enquanto produto, mas também de sua prática para o desenvolvimento emocional e orofacial, por exemplo (Brasil, 2015), ainda assim, para este público esta prática é desencorajada e por vezes até desaconselhada (Costa et al., 2024).

Algumas considerações

É sintomático que o modelo comunicacional utilizado pelo MS na SMAM seja praticamente o mesmo há mais de 30 anos. A campanha segue veiculando cartazes pouco conectados ao dia-a-dia da maioria das famílias e ainda recorre a estratégias prescritivas, que desconsideram o impacto que podem ter na população alvo, uma vez que não há avaliação da efetividade das mesmas. A comunicação aparece como uma ferramenta de divulgação, mas não considera a relação existente entre os atores envolvidos no processo e como pode ser melhor utilizada.

Ainda assim, podemos observar alguns avanços recentes. Por muitos anos, as campanhas trouxeram apenas a imagem da mãe e do bebê, ignorando a importância de outros atores para que a amamentação aconteça. A campanha de 2024, por exemplo, que tinha como tema principal o apoio ao aleitamento em qualquer situação, ocorreu quando o sul do país foi devastado por chuvas intensas, e excepcionalmente, tivemos três cartazes veiculados neste ano. Um deles apresentava uma mulher amamentando enquanto estava em um abrigo e parecia receber apoio de uma voluntária. Outro trouxe uma mulher que amamentava em uma unidade de saúde ao lado de uma profissional da área e houve mais um em que uma mulher com deficiência amamenta ao lado do companheiro, dentro de um ônibus. Entretanto, nos chama atenção que no primeiro ano em que as pessoas com deficiência parecem ter recebido protagonismo na SMAM, elas o dividem com outros atores e contextos, uma vez que há três cartazes vinculados a esta campanha.

O leite humano continua a ocupar o lugar de protagonista na política e o seu fornecimento ao bebê aparece como objetivo central. Assim como nos primeiros anos da SMAM, as mulheres são representadas sorridentes e transmitem uma impressão de tranquilidade enquanto amamentam, além de estarem inteiramente dedicadas ao bebê, atentas à eles. Porém, observamos que uma série de outros ambientes foram inseridos ao longo dos últimos anos, inclusive no último ano há uma das imagens em que a família está dentro de um ônibus e outro em que a mulher aparece ao lado de alguém vestindo um colete, que pode indicar ser voluntário em local de acolhimento temporário, mostrando que não apenas o profissional de saúde pode oferecer esse apoio. Para que possamos chegar a estas conclusões, é preciso que compartilhemos essas representações e símbolos. A escolha por estes cenários é indicativa de quem continua a ser o público alvo da campanha: quem são as pessoas que no Brasil andam de ônibus e que podem vir a precisar de acolhimento temporário em espaços coletivos em virtude de ocorrências climáticas?

Ao longo dos últimos anos observamos também o aumento da presença de pessoas pretas e de homens/pais nos cartazes, o que acreditamos ter relação com uma maior representatividade das campanhas, majoritariamente estreladas por pessoas brancas. Essas mudanças sociais têm sido observadas também nas políticas de saúde, hoje, além da saúde da mulher e da criança, temos políticas que pensam a saúde da população negra, a saúde do homem e a saúde da população LGBTQIA+, por exemplo.

Ainda assim, os cartazes trazem apenas casais heterossexuais e não há menção à dupla maternidade ou famílias formadas por pessoas transgênero. A população LGBTQIA+ não está representada nas campanhas: os bebês aparentemente estão mamando em mulheres cisgêneras e com pais cisheterossexuais. Pessoas transgênero podem amamentar, sejam homens ou mulheres, mas não há nas campanhas representatividade de famílias que fogem ao padrão heteronormativo.

Estudos indicam que o mais importante para o sucesso da amamentação são as ações efetivas de incentivo e apoio. A existência de políticas que considerem as minorias, a inserção do pai no pré-natal e as discussões a respeito das interseccionalidades entre gênero, raça e classe social, por exemplo, podem ter contribuído para que a presença do pai/parceiro, assim como diferentes marcadores sociais como raça, idade e deficiência protagonizarem as campanhas dos últimos anos, indicando um padrão de mudanças sociais.

Uma lacuna importante é o fato de não terem adolescentes representados nas campanhas. Ainda que a gravidez na adolescência seja uma realidade em nosso país, este público não está em nenhuma das campanhas realizadas pela SMAM. Uma das nossas hipóteses é o julgamento moral que permeia as discussões sobre sexualidade e reprodução na adolescência, rotulando-a como precoce e indesejada, fazendo com que adolescentes não sejam representados nas campanhas de amamentação. Cabe ainda ressaltar que estratégias governamentais recentes estimularam uma (des)educação em sexualidade e a ênfase na abstinência como método de prevenção da gravidez na adolescência (Paiva e Brandão, 2023).

O campo dos direitos reprodutivos e dos estudos de gênero é um território em disputa, ao mesmo tempo em que observamos mudanças que parecem caminhar na direção da construção de uma sociedade mais equânime neste sentido, vemos embates e retrocessos constantes e nos parece que os canais oficiais têm falhado ao se comunicar com o público dissidente para garantir seus direitos. Neste sentido, quando pensamos no papel da comunicação nas instituições e sua capacidade de promover mudança social, vemos como é importante fortalecer o controle social para que as pessoas possam reivindicar a saúde e a comunicação enquanto direito para que possamos construir um SUS mais equitativo e equânime, e que fiel aos seus princípios e diretrizes, possa oferecer a cada pessoa o que ela necessita.

Referências

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Contribuições dos autores (CRediT): 1. Conceituação; 2. Curadoria de dados; 3. Análise formal; 4. Aquisição de financiamento; 5. Investigação; 6. Metodologia; 7. Administração de projetos; 8. Recursos; 9. Programas de computador; 10. Supervisão; 11. Validação; 12. Visualização; 13. Escrita: rascunho original; 14. Escrita: revisão y edição. C. S. S. S. contribuiu em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14. M. A. F. N. contribuiu em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14

Editado por: O comitê editorial executivo Juan Scuro, Pilar Uriarte, Victoria Evia e Martina García aprovaram este artigo.

Nota: O conjunto de dados nos quais se baseiam os resultados do estudo não está disponível.[a][b][c]


[1] Neste artigo optamos por utilizar as nomenclaturas leite humano e leite materno. Compreendemos que esta última é ainda predominante no campo, mas consideramos igualmente importante destacar que homens trans podem ser pais e amamentar seus bebês, incorrendo no uso mais contemporâneo do termo «leite humano».

[2] Em 1990, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) organizou com a OMS um encontro chamado «Breastfeeding in the 1990s: A Global Initiative» onde se produziu a «Declaração de Innocenti», que trata da Proteção, Promoção e Apoio ao Aleitamento Materno e recomenda a criação um comitê nacional de coordenação da amamentação e a implantação dos 10 passos para o sucesso da amamentação nas maternidades e uma série de outras ações.

[3] Informações disponíveis em World Alliance for Breastfeeding Action. https://www.waba.org.my/news/portstrut.htm

[4] World Breastfeeding Week 2018. World Health Organization. https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/world-breastfeeding-week-2018

[5] Curso oferecido de forma online e gratuita pela plataforma AVASUS. É utilizado no pedido de extensão da licença-paternidade como comprovação do recebimento de orientações sobre paternidade responsável.

[a]Por favor confirmar.

[b]Maura, não sei se entendemos bem. O conjunto de dados seriam os cartazes das campanhas? Se sim, eles são públicos e estão disponíveis para acesso nos sites mencionados.

[c]As campanhas estão disponíveis na página do Banco de Leite Humano da Fiocruz: https://rblh.fiocruz.br/campanhas-nacionais-semana-mundial-de-aleitamento-materno-smam#overlay-context=pagina-inicial-rede-blh