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Águas perigosas: Guarda do Cais do Porto e espaço urbano portuário (1919-1923)
Claves. Revista de Historia, vol.. 7, núm. 13, 2021
Universidad de la República

Tema Central

Claves. Revista de Historia
Universidad de la República, Uruguay
ISSN-e: 2393-6584
Periodicidade: Semestral
vol. 7, núm. 13, 2021

Recepção: 15 Setembro 2021

Aprovação: 02 Dezembro 2021

Resumo: Este artigo analisa as múltiplas dimensões de experimentação do espaço urbano portuário, tomando como tema o policiamento pago na região portuária do Rio de Janeiro (Distrito Federal) durante o início da década de 1920. Procura-se, a partir das apropriações e disputas feitas sobre o espaço daquela região entre os grupos sociais que nele interagiam, pôr o espaço no centro da análise, entendendo-o não apenas como cenário neutro onde processos históricos ocorriam e que sofria seus efeitos, mas cuja materialidade era fator fundamental atuante no desenvolvimento desses mesmos processos e a multiplicidade de sentidos que ele carregava. Para isso, nos focamos na organização da Guarda do Cais do Porto, a forma pela qual o contrabando no porto agia e os conflitos da Guarda com outras instituições coercitivas locais, mostrando como produto desta contenda a delimitação de novas regras ao policiamento semiprivado pago no Distrito Federal.

Palavras-chave: Guarda do Cais do Porto, contrabando, espaço portuário, polícia.

Abstract: This article analyses the multiple dimensions and experimentations of urban port space, using as theme Rio de Janeiro’s wharf guard and its organization in the beginning of 20th century. From appropriations and disputes between social groups that lived there, we put the port space as central object of our analysis, conceiving it not only as neutral scenery where historical processes occurred and product of its effects, but as a key factor with its own materiality in these same processes’ development and in the multiple meanings they carried. To achieve our goal, we focus on Rio’s wharf guard organization, the way smuggling happened in that area and the conflicts between the guard and other local security institutions, showing as result of these tensions the delimitation of new rules regarding semiprivate security at Rio de Janeiro.

Keywords: Wharf Guard, smuggle, port space, police.

1. Introdução

Ainda pouco destacado por produções historiográficas em relação à complexidade de suas dimensões, o espaço urbano se tornou objeto fundamental de certas pesquisas que nos ajudam a entendê-lo de forma mais detalhada e, por conseguinte, a desnaturalizá-lo enquanto mero cenário neutro e pré-definido, no qual processos históricos se desprendem.

Obras de uma heterogeneidade de áreas das Ciências Sociais, como antropologia, geografia, história e sociologia, refletem sobre o espaço urbano enquanto socialmente produzido e construído, explicitando os múltiplos sentidos que ele adquire para diferentes indivíduos que o experimentam e os embates travados pelos seus significados, relacionados também a uma disputa pela memória, a qual envolve questões de gênero, classe, raça, etc.

Parte de qualquer pesquisa histórica, o espaço, junto do tempo, é um elemento que exige recortes e justificativas quando se propõe a análise de determinado objeto histórico. No entanto, geralmente ele acaba pouco questionado e em segundo plano por certas análises, o que pode ocasionar num empobrecimento no entendimento sobre a complexidade de certos fenômenos históricos.

Pensando nesta problemática, procuramos, neste artigo, posicionar o espaço – o urbano, portuário – enquanto objeto central de análise para o entendimento de maneira mais completa e aprofundada sobre a história da polícia carioca durante a Primeira República.

Obras clássicas da historiografia da justiça e do crime no Brasil se basearam nos pressupostos de Edward Thompson para entender a formação da classe profissional policial no país. Ancoradas na concepção thompsoniana de classe social enquanto um processo histórico influenciado não só por fatores econômicos, mas também culturais,[1] elas focam nas experiências cotidianas adquiridas por policiais no exercício de seus ofícios pelas ruas de grandes capitais para explicar a formação de sua classe profissional.[2] Ao valorizarem a agência histórica dos policiais na construção de suas identidades, elas acabaram por se afastar da concepção clássica de estudos marxistas que definiam a polícia enquanto mera extensão do Estado, seu braço armado para repressão e disciplinarização da classe trabalhadora. Expõem, outrossim, como na prática a polícia brasileira se distanciou de um modelo burguês idealizado de aparato repressivo, ao constatarem como o modus operandi dela encontrou percalços para seguir os princípios de uma polícia científica e moderna. Ainda que problematizem o ethos policial, essa produção foca no policiamento de grandes centros urbanos como um problema do Estado, feito principalmente por ele. O limite dessa abordagem subjaz no seu ofuscamento da riqueza da diversidade de atores presentes historicamente na construção da segurança pública em grandes centros urbanos no Brasil, durante o período republicano.

Ao expormos a formação de um mercado da segurança, como ocorrido no Rio de Janeiro durante o contexto republicano, desvelamos a atuação de agentes privados e associações comerciais no policiamento da cidade. Através disso, podemos problematizar o próprio conceito de policiamento moderno enquanto essencialmente estatal, ao apontarmos os limites de tal interpretação.[3]

No entanto, esse processo de formação é inerentemente entrelaçado a características espaciais do Rio de Janeiro: a questão do policiamento urbano carioca se mostra, dessa forma, também uma questão espacial. O papel prestado pelas características do espaço da região portuária na criação, modulação e expansão desse mercado da segurança explicita como ele foi apropriado e disputado por distintos sujeitos inseridos nesse mercado. A importância do espaço já foi enfatizada por produções sobre a polícia carioca. Galeano, por exemplo, trata do espaço transnacional de circulações de criminosos para descrever o câmbio de técnicas feitas entre a Polícia do Distrito Federal e as polícias dos países sul-americanos vizinhos do Brasil.[4] Entretanto, ainda são poucas as pesquisas que atentam para ele com o objetivo de se pensar a constituição da Polícia.

Para a compreensão dessa importância para a geração do mercado da segurança no Rio de Janeiro, damos enfoque à atuação de uma das organizações coercitivas ali atuantes: a Guarda do Cais do Porto (G. do. C. do P.). Escolhemos o ínterim 1919-1923, por ofertar situações que nos permitem chegar ao nosso objetivo de mostrar como a materialidade e a apropriação do espaço portuário diretamente influenciaram na formação do mercado de segurança ali, mais especificamente na área do chamado Cais do Porto: o debate em torno da organização daquela corporação, a forma como ocorria o contrabando na região portuária e sua teia de agentes e, por fim, as negociações empreendidas entre a G. do C. do P. e as guardas noturnas em 1923. Estruturamos esse trabalho do seguinte jeito: iniciamos pondo em evidência a complexidade existente na definição do que é o espaço portuário do Rio de Janeiro, dialogando com obras que discutem o problema em se conceituar o que é o espaço urbano e como ele é formado. Logo após, narramos a organização e a atuação da Guarda do Cais do Porto para elucidarmos como aquele espaço impactava no policiamento pago exercido localmente.

2. Espaço urbano e Porto: complexidades de sua definição

Para o filosofo Henri Lefebvre (2013), o espaço urbano é produto de processos sociais do capitalismo.[5] De abordagem marxista, ele caracteriza a definição do espaço como fruto das relações de poder. Produto de disputas sociais inseridas em macro-processos como a luta de classes, o espaço para Lefebvre reproduz as dimensões da dinâmica capitalista, demonstrando assim características da sociedade, a exemplo da sua hierarquização, ou seja, a estratificação do espaço urbano em áreas valorizadas e suas contrapartes marginalizadas. Já para o geógrafo David Harvey, o espaço urbano é composto por múltiplas dimensões: ele não é apenas produzido socialmente por processos coletivos, como a sua definição também depende do indivíduo que o vivencia e sua relação afetiva com ele.[6] Harvey demarca, dessa forma, como o espaço é individualmente construído e relacional, pois sua nomeação e caracterização dialogam com as perspectiva dos atores que o experimentam, portanto sujeito a diferenças de gênero, classe e raça em sua valorização e construção de sentidos. Dessa forma, o autor aponta diferentes formas que ajudam a se pensar o caráter fluido e diversificado do espaço a partir da sua significação, ressaltando que a variável do tempo não pode ser dissociada dele.

A antropóloga Setha Low escreve que essa construção social do espaço urbano inclui as transformações e contestações que ocorrem nele através das interações sociais das pessoas, disputas pela memória, sentimentos, imaginações e do seu uso cotidiano.[7] A significação do espaço segundo a experiência vivida nele produz o que a autora denomina de place. Low cita Hilda Kuper ao dizer como o poder do espaço subjaz em sua capacidade de comunicar significados articulados através de um complexo sistema de associações sociais e idealizadas. Dessa forma, para tomarmos ciência de sua multiplicidade de valores produzida pela sua construção social, Low recomenda a análise sobre as disputas acerca de seus significados. A análise (feita muitas vezes pela etnografia urbana) desses “espaços contestados”, sítios onde ocorrem conflitos na forma de oposição, confrontação, subversão e resistência entre atores, mormente com acessos díspares a poder e recursos, permitem a desnaturalização da ideia de neutralidade do espaço (mostram dimensões políticas e ideológicas de sua definição), do mesmo jeito que expõe a multiplicidade de significados presentes nele, dependente de quem o experimenta.

Já os antropólogos Akhil Gupta e James Ferguson rompem com a vinculação da identidade cultural a um dado espaço, bem delimitado por fronteiras, estático e fechado.[8] Eles apontam o deslocamento entre espaços, com aqueles que habitam fronteiras entre distintas comunidades, os que vivem cruzando-as e os que a atravessam de forma mais ou menos permanente para contestar a associação direta entre cultura e espaço, ressaltando a disjunção possível de haver entre ambos. Citam a presença de diferenças culturais no interior de uma mesma localidade, assim como o caráter híbrido de culturas para defenderem sua tese. Para os autores, o espaço deve ser pensado como estando interligado a outros de maneira hierarquizada e com fronteiras cada vez mais indeterminadas devido à intensificação de suas conexões por conta da globalização, o que deságua na dificuldade em pensá-los enquanto culturalmente e etnicamente bem demarcados, associados a uma determinada sociedade.

A ideia da estreita vinculação entre espaços é usada por Maurízio Gribaudi em seu trabalho sobre Paris para criticar a concepção de uma modernidade territorialmente delimitada quando se trabalha a cidade como objeto histórico.[9] Isso significa refletir sobre as interligações que distintas áreas do espaço urbano podem ter, apesar de serem classificadas binariamente em termos diametralmente opostos, vistos muitas vezes enquanto cindidos um do outro. Gribaudi estuda o centro da Paris do século XIX, onde setores empobrecidos da população habitavam, para traçar suas ligações em relação às atividades econômicas nele ocorridas e o funcionamento das áreas mais ricas e consideradas modernas. Desse jeito, ele rompe com a dicotomia feita entre uma área “pobre e atrasada” – que não participa das transformações urbanas propiciadas pela modernidade – existente em grandes metrópoles, lócus de uma cultura popular de setores mais marginalizados da população, e uma rica, que bebe do advento da modernidade, onde grupos com maior poder aquisitivo habitam.

Gribaudi mostra como a ideia de uma configuração da cultura popular contraposta a um processo de afirmação da lógica da modernidade não se sustenta. A partir disso, percebemos que as transformações urbanas ao longo do tempo ocorrem em diversos ritmos e formatos em diferentes espaços da cidade e como sujeitos se articulam de maneiras heterogêneas a eles. Uma obra que questiona bem a cisão entre bairros restritos a uma elite e a um público mais pobre é a de Bruno Carvalho, Cidade Porosa.[10] Nela, o autor evidencia a circulação de pessoas abastadas por uma área que, de forma essencializada, foi interpretada como lócus tradicional de negros e segmentos empobrecidos da população carioca: a Cidade Nova. Esta interpenetração marca o título do livro de Carvalho, que entende os bairros do Rio de Janeiro no início da República como possuidores de fronteiras porosas, ou seja, frequentados por diferentes classes sociais que podiam compartilhar usos de seus espaços, produzindo um intercâmbio cultural.

O exercício crítico feito pelo historiador Bernard LePetit às maneiras de se pensar as transformações urbanas feitas por trabalhos acadêmicos possui semelhanças com os questionamentos feitos por Gribaudi. Ele se contrapõe ao modelo culturalista do urbanismo, que dá certa linearidade temporal ao processo histórico de desenvolvimento das cidades.[11] Para LePetit, o uso da analogia do palimpsesto para ilustrá-lo é equivocado, já que o espaço urbano carrega em si a persistência de diferentes temporalidades e usos sociais, tornando-se incongruente pensa-lo em termos evolutivos lineares conforme o tempo passa. Lepetit escreve que não se deu aos usos sociais da cidade a mesma atenção classificatória dedicada às suas formas, sendo preciso diferenciar a morfologia urbana e os usos sociais do seu espaço, por possuírem ritmos e temporalidades diferentes. Para acessar estes diferentes usos sociais, o autor propõe uma análise hermenêutica do espaço urbano que leve aos significados adquiridos por ele pelos seus habitantes.

Todos os trabalhos apresentados deixam clara a complexidade em se definir o que é o espaço urbano por conta do seu caráter fluido, não-linear e aberto a múltiplos significados de acordo com os sujeitos que o experimentam. Muitas destas problematizações são perceptíveis em produções historiográficas preocupadas em compreender os usos, as modificações e as relações do porto do Rio de Janeiro com a cidade. O espaço portuário é objeto central de análise em obras que destacam a diversidade de temporalidades presentes nele, tecem críticas a uma leitura evolutiva e linear de suas modificações físicas, descobrem os distintos significados que ele adquiria segundo os interesses daqueles que o frequentavam, pensam o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e configuração do Estado a partir da produção social daquela localidade.

É de Sérgio Lamarão um dos primeiros e mais clássicos estudos sobre o porto carioca, o qual procura resgatar a genealogia da zona portuária e seu núcleo, o Cais do Porto, alinhando as mudanças na sua ocupação e utilização aos ciclos econômicos pelos quais o país passou.[12] Assim, os macro-processos históricos, a exemplo da descoberta e o exploração do ouro em Minas Gerais ainda no século XVII, a abertura dos portos com a vinda da família real em 1808, a firmação do café na posição de principal produto de exportação brasileiro, o fim da escravidão e a formação de um mercado de trabalho calcado na mão de obra assalariada refletiriam no redesenho da localidade ao longo do tempo. Lamarão opera, dessa forma, com a noção de produção social do espaço. Não obstante, ele destaca a persistência da utilização de trapiches (considerados estruturas portuárias pré-industriais) na transição do século XIX ao XX, a despeito dos projetos de modernização do porto estimulados pelas inovações tecnológicas vindas da Segunda Revolução Industrial. Com isso, ele expressa a concomitância de diferentes temporalidades dentro do espaço da zona portuária – os trapiches e as docas que foram surgindo com os projetos de modernização daquela área –, demarcada pelo autor como constituída pelos bairros de Saúde, Gamboa e Santo Cristo.

A pesquisa de Lamarão influenciou outras produções, como a de Thiago Vinícius Mantuano da Fonseca e Cézar Teixeira Honorato,[13] as quais criticam uma leitura do espaço portuário em termos de evolução linear. Fonseca diz a manutenção de trapiches para a descarga de mercadorias na zona portuária ter sido resultado dos interesses de certos comerciantes em descarregarem e embarcarem suas mercadorias ao largo fora das docas do porto, modernizada e cara, pois barateavam seus custos.[14]

As disputas pelo espaço urbano, para usar os termos de Low, em relação à zona portuária são visíveis na tese de doutorado de Nívea Maria Silva Vieira sobre a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ).[15] Ela opera com o conceito de frações de classe, cunhado por Antônio Gramsci, para fazer um apanhado sobre os sucessivos projetos de modernização portuária feitos na área desde o regime imperial, ao longo da Primeira República até o início da Era Vargas. Pela leitura deles, Vieira refuta uma leitura homogeneizante da classe dos comerciantes com negócios no porto, ressaltando ter havido em seu interior discursos concorrentes que tentaram conquistar inserção no Estado como consensos hegemônicos. Na procura por entender o Estado como relação de força, onde setores da sociedade civil procuravam ter seus interesses inseridos, ampliando-se o escopo de participação nele, a autora resgata as diferentes docas que surgiram e terminaram administradas por uma gama de empresas segundo interesses díspares na região portuária.

Os diferentes usos sociais do espaço portuário carioca são acessados pela tese de doutorado de Érika Arantes[16] e de Marli de Albuquerque.[17] Na primeira, a historiadora se preocupa em contar as experiências de trabalhadores da estiva na área portuária do Rio de Janeiro, incorporando-as à história do trabalho e enfatizando o papel de negros na formação da classe trabalhadora carioca. Inserida no cotidiano dos estivadores e suas relações com a polícia, empreiteiros da estiva, religiosos e outros atores, ela acaba deixando clara a diferença de usos e significados díspares que aquela região adquiria para aqueles que nela viviam e a experimentavam e aqueles que a olhavam de fora, sem maiores familiaridades, como parte da imprensa carioca tradicional. Com isso, Arantes demonstra as múltiplas construções sociais daquele espaço.[18] Semelhante a Bruno Carvalho, ela apresenta as trocas culturais ocorridas na zona portuária ao escrever sobre a presença de portugueses e pessoas mais abastadas em casas de religião africana. Já a obra de Albuquerque associa os processos de modernização do porto às mudanças nas dinâmicas de trabalho dos estivadores.

Remontamos aqui a algumas obras, no entanto reconhecemos a extensão de diversos estudos importantes sobre o porto carioca que merecem ser citados.[19] Os próprios conceitos de região portuária e porto se tornam um problema ao perfilarmos seus estudos. Isso porque há uma plasticidade evidente neles, pelo fato de seus conteúdos (quais bairros formam esse espaço) dependerem das questões e objetos das pesquisas sobre eles, variando de acordo com as obras. Por isso, enquanto Sérgio Lamarão foca nos bairros da Saúde, Gambôa e Santo Cristo para falar de região portuária, Thiago Mantuano, preocupado com as reestruturações demográficas nela ao longo do tempo, expande o seu escopo espacial e a configura como formada pelas freguesias de Santa Rita, Santana e São Cristóvão.[20] Outros trabalhos a tratam de maneira mais genérica, sem maior precisão, como faz Érika Arantes, apesar de conseguirmos presumir um foco na Gambôa, Saúde e Santo Cristo. Para nosso trabalho, nos voltamos à área de policiamento do Cais do Porto, que cruzava a região portuária. Ela era formada por uma faixa litorânea que passava por Praça Mauá, Saúde, Gambôa, União, Santo Cristo, rua Coronel Pedro Alves, Avenida Francisco Bicalho, o cais, as praias de São Cristóvão e Retiro Saudoso, até o Canal de Benfica.[21] Fora isso, a G. do C. do P. auxiliava, no mar, o policiamento desde a ponta do Calabouço até o Canal de Benfica, bem como fazia rondas nos portos de Maria Angú e Inhaúma e nas ilhas do Distrito Federal.

Foi posta a complexidade de se pensar e definir o que era o espaço portuário carioca, atravessado por disputas e múltiplos significados, durante a cristalização do novo regime republicano. A seguir, usaremos essa miríade de sentidos a qual tal região estava imbuída para pensarmos o seu espaço não somente enquanto produto de processos históricos, cenário onde eles se desprendem e que sofre seus efeitos, materializados em suas edificações, relações sociais, etc. Paul Stock traz a provocação de se pensar o espaço segundo sua capacidade de afetar processos históricos.[22] Ele enfatiza a agência histórica da própria materialidade do espaço, entendendo-o enquanto fator atuante para a ocorrência de determinados eventos. Procuraremos fazer isso pensando o policiamento pago na região portuária.

3. Implicações do espaço no processo histórico de formação do policiamento pago: A Guarda de Cais do Porto e seus embates

Em novembro de 1919, um grupo de comerciantes da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), encabeçados pelo presidente da organização, Dias Taváres, levou ao chefe de polícia, Germiniano da Franca, um abaixo-assinado solicitando autorização para organização de uma polícia especial na área do Cais do Porto, onde estavam os trapiches e os armazéns externos de mercadorias desembarcadas na cidade. O pedido era uma resposta ao aumento no número de roubos, terrestres e marítimos, e contrabandos ocorrendo lá e pela Baia de Guanabara. Os armazéns externos ficavam num local relativamente despoliciado se comparado ao interior do novo porto, inaugurado em 1910, onde a sua companhia arrendatária, a Compagnie du Port de Rio de Janeiro, mantinha uma polícia interna para cuidar dos armazéns lá disponíveis, durante as 24 horas do dia.[23]

Percebe-se, nos grandes jornais da época, elogios à medida. As notícias da organização de uma polícia para a área do Cais do Porto carregavam caracterizações daquela área, tecidas pela grande imprensa. Para o Correio da Manhã:[24]

Um lugar onde parecia que os ladrões haviam estabelecido o seu quartel-general, o seu campo de ação permanente e inacessível a qualquer medida da polícia, era o Cais do Porto.

Os roubos e os assaltos, até as aventuras audaciosas à mão armada, ali se repetiam com uma frequência espantosa. Os jornais, registrando os fatos, não cessaram de admirar como as coisas caminhavam assim para uma situação irremediável. (Correio da Manhã [Rio de Janeiro] dez. 17, 1919: 7597. Autor desconhecido.)

Ao descrever os bônus de se haver uma guarda para ronda pelo Cais do Porto, o Correio da Manhã ressaltava a ajuda que seus agentes secretos prestariam à repressão dos “contrabandos e intrujices, delitos esses em que os malandros da Saúde são useiros e vezeiros”. A Gazeta de Notícias descrevia o Cais do Porto como despoliciado.[25] Detalhando as atribuições da futura corporação, especificava seu importante papel na repressão ao contrabando de mercadorias furtadas ali e acrescentava a ação preventiva de investigações que ela teria para combater “malandros e ‘intrujões’”. Por sua vez, o Jornal do Brasil noticiava:[26]

Os ladrões fizeram do Cais do Porto, em toda a sua extensão, um verdadeiro campo de ação, exercendo a sua atividade com o maior desassombro. Os vigias que os comerciantes mantinham, eram impotentes para conter e enfrentar os quadrilheiros, homens sanguinários e já afeitos ao crime.

Não tendo, além disso, a mínima parcela de autoridade, agindo cada um per si, os vigias tinham sempre receios de uma intervenção enérgica e daí a impunidade e o ar zombeteiro dos ladrões.

Ultimamente, os roubos têm crescido de modo assombroso, sendo avultados os prejuízos do comércio. Daí a iniciativa do Sr. Dias Taváres, Diretor da Associação Comercial, da fundação da Guarda do Cais do Porto. (Jornal do Brasil [Rio de Janeiro], dez. 18, 1919: 350. Autor desconhecido.)

Este jornal tomava a futura G. do C. do P. como garantia para a liberdade de trabalho na localidade, ao reprimir “ladrões, desordeiros e desocupados” que lá promoviam desordens. Segmentava ainda o Cais do Porto enquanto formado tanto por “quadras normais como anormais”. Diretamente sob a influência de interesses da ACRJ, o Jornal do Comércio, em sua edição da tarde, aclamou a sugestão por considerar a vigilância dos armazéns do Cais do Porto deficiente, sem deixar os negociantes que neles tinham mercadorias dormirem calmamente.[27] A Noite escrevia lá estarem agindo “desassombradamente” os “ladrões e a vadiagem”, que prejudicavam seriamente os comerciantes e industriais.[28]

O que percebemos pela leitura do noticiário é uma explícita visão daquele espaço que pertencia à região portuária como localidade violenta e bojo de ladrões, malandragem e intrujões. Há em certas linhas, como a do Correio da Manhã, referência a bairros estigmatizados como focos de crimes na cidade, a exemplo da Saúde, predominantemente habitado por negros. Estes viviam sob um regime de suspeição generalizada por parte da polícia, balizada em teorias racistas e científicas que condicionavam a cor da pele à propensão ao crime. Este atavismo era a visão de Césare Lombroso, importante criminólogo italiano cujo pensamento teve forte adesão pela polícia carioca e cujo discurso era reproduzido nas linhas dos noticiários policiais pela grande imprensa. A estigmatização do negro e dos pobres em geral como uma classe social perigosa, não só pelas autoridades policiais, como pela imprensa, estendia-se ao espaço onde habitavam. Isso ocorrera com os cortiços no Centro, que foram objeto de intervenção e destruição pela reforma Pereira Passos, considerados antros de doenças e crimes.[29] Outro caso clássico é como a Saúde foi retratada durante a Revolta da Vacina, em 1904, quando a Praça da Harmonia fora renomeada de “Porto Arthur” carioca sob o comando de Prata Preta, alcunha de Horácio José da Silva, estivador, cuja figura foi bestializada e criminalizada pela imprensa.[30] Quando a Gazeta de Notícias noticiou sobre a criação da G. do C. do P., louvou a escolha de João Machado Gouvêa, sargento da Brigada Policial, como seu primeiro comandante, por sua experiência no patrulhamento do morro da Favela.[31] O jornal operava com a ideia de que a frequência de homens pobres naquele espaço, associados a violência e a favela, era a causa dos constantes roubos aos armazéns no Cais do Porto. Tal associação de espaços portuários ao crime não se fazia apenas no Rio de Janeiro, mas em outras cidades portuárias de diferentes países. Como pessoas pobres sem poder aquisitivo tornavam regiões portuárias seus lares, estes espaços eram comumente estigmatizados enquanto perigosos. Vânia Munõz destaca, por exemplo, como crimes de sangue e violência foram associados ao porto de Valparaíso, por conta da irregularidade de seu terreno, que dificultava o exercício de um bom policiamento, a falta de iluminação, o público que o frequentava, presença de bares, etc.[32]

Esta significação, construção social do espaço do Cais do Porto como ponto de criminalidade dialogava com outra imagem sua: a de posto econômico nevrálgico da nação. Os criminosos ali eram considerados um empecilho ao desenvolvimento econômico nacional, capazes de trazer sérios prejuízos à capital e ao governo federal. Segundo a Revista Comercial do Brasil, depredações e roubos eram tão numerosos que certas companhias de seguro estrangeiras se recusavam a securitizar mercadorias que vinham ao porto carioca, pois receavam onerar pesadamente seus cofres via reembolsos.[33] A insegurança devido à ação impune dos “ladrões do mar”[34] chegara a levar algumas empresas de navegação a ameaçar a suspensão do tráfego de seus navios cargueiros para o Rio de Janeiro na impossibilidade de verem garantidas a integridade de suas mercadorias, o que sujeitaria os cofres públicos a altos prejuízos, já que parte sensível da receita do governo federal era oriunda dos impostos de importação de mercadorias coletados pela Alfândega.

Estas diferentes significações sobre o espaço do Cais do Porto carioca tornavam a manutenção de uma guarda especial de policiamento não só um problema de grandes firmas, mas uma prioridade do próprio Estado brasileiro, o que explicará posteriormente a sua participação na administração do grupo através da Alfândega. Ela usará a nova corporação tanto para auxílio na repressão ao contrabando, quanto para proteção de seus próprios armazéns. Tais sentidos aferidos ao Cais do Porto pela imprensa e por empresários justificavam a necessidade de implantação de um serviço de vigilância ali, contribuindo para o processo de instalação da Guarda do Cais do Porto ao advogarem a favor da sua formação.

Quem eram os sujeitos envolvidos na atividade criminal do contrabando? Segundo as fontes, é possível perceber grande quantidade de homens negros, portugueses e espanhóis detidos, acusados de extraviarem mercadorias. De acordo com o delegado Vicente Reis, eles eram munidos de boas espingardas, o que dificultava a repressão contra suas atividades. Reis destaca alguns nomes: Antonio Dyonisio; Antonio Foguista; Carlos Torres Pacheco, vulgo Carlito; Darino Pereira; Edward Godwann; Felippe Reis, vulgo Cae n’agua; Henrique da Silva Queiroz; João de Figueiredo; Joaquim Marques da Silva, vulgo João Sacovenha; Joaquim de Oliveira; Joaquim Leonardo dos Santos, vulgo Pata-choca; José Garrido Garcia, vulgo Hespanholito; Manoel Joaquim Fernandes; Thomas Grey de James May. Afere, contudo, particular atenção a Alexandre Bernardino dos Santos, o Alexandre Moleque, negro encorpado ex-membro da Brigada Policial, que, de acordo com Reis, causava terror no bairro da Gambôa, servindo de diretor das quadrilhas que organizava para os assaltos no mar, entre os quais se destacou o feito ao Club Naval.[35] Enriquecera com o crime e vivia rodeado por amásias. Caminhavam logo atrás dele figuras notórias como Pata-choca, Carlito e Darino. Por outro lado, muitos destes homens estavam longe de serem desocupados. Na verdade, havia um número substancial de denúncias feitas contra operários marítimos pela suspeita de participação nos crimes de contrabando. Estes, inseridos no processo de transporte das mercadorias, ou seja, em contato com elas em considerável parte do tempo, eram mal pagos e sofriam com longos expedientes. Catraieiros, “breus”,[36] estivadores, arrumadores, carroceiros, foguistas, até mesmo vigias particulares eram acusados pelo empresariado de extravios de mercadorias ou cooptação com gatunos, e, portanto, alvos de vigilância contínua. Foi, por exemplo, o caso de Amadeu João de Oliveira, brasileiro, negro de 33 anos, e Manoel da Cunha, português, branco de 31 anos, arrumadores que foram presos ao serem apanhados com uma pilha de sacos roubados do armazém 14.[37] A suspeição era tal que quando a G. do C. do P. foi criada, foram esquematizadas revistas diárias feitas em estivadores no horário da saída deles, conduzidas pelo inspetor da corporação, João Machado Gouvêa, na tentativa de se coibirem os furtos de mercadorias ocorridas nos armazéns do Cais durante o translado dos produtos. Numa delas, o investigador Jayme Fischer viu sair dos armazéns 5 e 6 um negro conduzindo um embrulho com vinhos do Porto.[38] Deteve o suspeito, atiçando a revolta de estivadores próximos, que foram apoiar do companheiro. Iniciou-se o confronto, no qual Fischer foi atacado, junto com outro investigador e Gouvêa, vindo este último a receber uma pedrada na cabeça que o deixou em coma e o afastou do seu cargo durante um longo período.

A tentativa de controle feita sobre os operários marítimos se dá em um contexto transnacional de paralisações ocorridas em diferentes portos da região. A intensa mobilização grevista marcava o fortalecimento dos sindicatos, como ocorrido no Rio de Janeiro entre 1917-1920, anos considerados de radicalização proletária. No porto de Buenos Aires, fenômeno parecido ocorria no mesmo período. Procurando reagir às reivindicações sindicais e receosos com o avanço das ideologias anarquistas e socialistas na classe operária, ramos empresariais com atividades portuárias uniram esforços que foram materializados em instituições de vigilância contínua sobre seus empregados. Desta forma, pesquisas como as de María Ester Rapalo[39] e Sandra McGee Deutsch[40] destacam como centros comerciais na Argentina somaram esforços para formar a Liga Patriótica Argentina e a Asociación del Trabajo, cujos objetivos eram enfraquecer o poder dos sindicatos. O modus operandi destas associações incluía o recrutamento de guardas e investigadores para tanto prevenirem quanto furarem greves portuárias. Da mesma maneira, a retomada de funcionamento do porto carioca após o fim da guerra não só evidenciava a sua fragilidade em questões de segurança[41], como havia o temor generalizado entre o empresariado de novas paralisações como as ocorridas em larga escala nos anos anteriores, as quais trariam pesados ônus financeiros.[42] Elas tinham sido efetuadas principalmente pela Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café. Portanto, as disputas pelo controle do espaço portuário carioca entre empresários e trabalhadores evidencia, conforme os preceitos de Lefebvre, macro-processos históricos, como as dimensões da luta de classes. Prova de como as greves foram determinantes à criação da G. do C. do P. foi a participação de policiais responsáveis por controla-las e que tinham trabalhado nos distritos policiais portuários na nomeação do efetivo daquela corporação. Um dos principais articuladores para a formação do grupo foi o delegado Cid Braune, que havia trabalhado no distrito de Santana, negociado com grevistas e, após deixar a polícia, tornou-se advogado do Centro do Comércio de Café. Sob suas ordens, João Machado Gouvêa havia atuado nas greves, como a de 1918, encarregado com repressão aos estivadores.

O contrabando na Baía de Guanabara era auxiliado pelas condições materiais do Cais do Porto. Como vimos, havia a manutenção de trapiches para o desembarque ao largo de mercadorias por empresas que optavam por não desembarcar nas docas devido às altas taxas que eram obrigadas a pagar. Estes trapiches muitas vezes não possuíam profundidade suficiente para aportarem grandes navios, devido aos seus formatos (comprimento e largura), tornando a utilização de chatas, pequenas embarcações ancoradas junto dos navios mercantes, obrigatória para o transporte das mercadorias a terra. As chatas também eram utilizadas para levar os produtos à Alfândega, onde eram registrados e taxados. Como a circulação destas mercadorias demorava, era comum haver navios que pernoitavam esperando até o lento processo de transporte de suas mercadorias findar.[43] Era principalmente durante as altas horas que os ladrões do mar aproveitavam para invadir as chatas e roubar os produtos nelas. O delegado Vicente Reis descreveu como agiam: durante o dia combinavam o plano em terra, tomando nota dos navios que desembarcarão as mercadorias.[44] Escolhem seus botes e embarcam em grupo de um lugar diferente do qual desembarcarão, que deve ficar próximo de onde será feito o roubo, para esconderem os espólios. Mirando as chatas, esperam a noite chegar com a sua escuridão para as invadir e iniciar o crime. Se a embarcação estivesse presa ao navio de onde recebia as mercadorias, os ladrões podiam optar por cortar as cordas que a prendiam e esperar a maré afastá-la para consumarem o delito num local mais distante e escondido, sem precisar se preocupar com vigias particulares nas embarcações. Circunstancialmente, os vigias nas embarcações podiam ser cúmplices no roubo. Quais produtos eram os mais ambicionados pelos ladrões do mar? A maioria dos roubos eram direcionados a sacas de café, revendidas pelos gatunos a pequenos comerciantes espalhados pela Gambôa, Santo Cristo, Saúde, São Cristóvão. Em 1925, por exemplo, houve destaque na apreensão feita pela G. do C. do P. de café em grão contrabandeado: 8.840 quilos, que totalizavam 14:000$000 dos 214:628$900 em valor de todos os produtos apreendidos naquele ano.[45] Além deste produto, havia uma alta diversidade entre o que era extraviado. As notícias mostram isso, como o caso de uma apreensão de vários produtos feita pela G. C. do P. em 1923, pela qual ela recuperou um fardo de fazenda, uma caixa de banha, oito sacas de café, uma barra de chumbo e 24 bobinas de papel para impressão, roubadas de diferentes firmas por ladrões do mar e carroceiros.[46] Contudo, carvão, peças de seda e artigos de luxo afiguram nos destaques. Em 1925, por exemplo, foram 22 peças de seda branca recuperadas, que totalizavam 10:100$000 em valor.[47]

A extensão da Baía de Guanabara, dotada de diversos trapiches, dificultava uma vigilância eficiente da criminalidade. Como as operações econômicas não estavam focadas em um ponto central do Cais do Porto, mas dispersas, isso facilitava a ação incólume de contrabandistas, que por vezes invadiam os trapiches, cientes da lacuna no policiamento local durante a noite, para roubar.

O aproveitamento dos trapiches para distintos objetivos – criminais ou mercantis – elucidam os diferentes usos sociais que suas estruturas físicas ofertavam. Podemos, desse jeito, conceber sua materialidade do seu espaço como importante fator para a disseminação do contrabando na Baía de Guanabara e, por conseguinte, da pressão de comerciantes pela instauração de um policiamento especializado para reprimir tal atividade. Deste modo, a estruturação de um mercado da segurança na área portuária se mostra também uma questão espacial.

Fundada em 31 de dezembro de 1919, a G. do C. do P. iniciou as operações em 1º de janeiro de 1920. Foi primeiro comandada por João Machado Gouvêa, que atuava como seu inspetor. Sob suas ordens estavam os guardas rondantes e investigadores responsáveis por traçar a rota dos produtos das empresas que eram extraviados pelos contrabandistas. As firmas que desejassem ter seus trapiches ou armazéns vigiados pagavam uma quota mensal para a G. do C. do P. O inspetor Gouvêa devia enviar relatórios mensais regulares ao chefe de polícia detalhando o andamento dos serviços. A gestão financeira da corporação ficava inteiramente ao encargo das empresas clientes, organizada por uma diretoria, oficializada no papel somente em 1925. Ela era constituída por um presidente, um secretário e um tesoureiro. Estes cargos foram ocupados respectivamente, no início, por Petersen Swason, diretor da Brazilian Warrant, empresa de capital inglesa do ramo de exportação de café, e da Companhia Armazéns Gerais Minas e Rio; João Augusto Alves, diretor do Lloyd Sul Americano, companhia de seguros marítimos e terrestres com sede no Rio de Janeiro, bem como presidente da Empreza Transporte, Commercio e Indústria, e Paulo Henrique Dezinot, importante industrial e um dos maiores depositários de minério do porto.[48] Os contribuintes da Guarda podiam participar das assembleias gerais feitas pela diretoria, nas quais eram apresentados os balancetes de gastos e discutidas sugestões e resoluções. Ademais, podiam interceder perante o chefe de polícia para reclamar do desempenho do inspetor e seus homens, sugerir nomeações.

Uma vez que o café era o produto mais visado nos roubos, não é de se estranhar que a articulação para a criação da G. do C. do P. reunisse três das maiores entidades comerciais até então envolvidas com a venda desse item: além da ACRJ, o Centro do Comércio de Café e o Centro do Comércio e Indústria do Rio de Janeiro contribuíram para a demanda de criação desta polícia especializada. Ao longo dos tempos, novas organizações passaram a contribuir com verba para a corporação. Eram elas: o Centro dos Empreiteiros da Estiva, grupo que reunia os recrutadores de estivadores para trabalho de descarga; a The Leopoldina Railway Co. Ltda., empresa férrea responsável pelo escoamento de produtos para o porto e dele para outras áreas do Rio de Janeiro; a Companhia das Docas, que administrava o espaço do Cais do Porto, onde estavam os armazéns internos e externos; o Lloyd Brasileiro, empresa nacional que fazia navegação de cabotagem no Brasil; a Alfândega; o Centro de Proprietários de Veículos, cujos membros eram carroceiros que participavam da capatazia e o Centro de Navegação Transatlântica, que reunia empresas internacionais de navegação.[49]

Os guardas iniciavam suas rondas das 17 até as 7 pelo Cais do Porto durante os dias úteis. Exerciam vigilância preventiva e combate ao contrabando, ajuda em repressão a greves no cais, podiam ser usados para o policiamento nos navios das suas empresas-clientes. Até a confecção do primeiro estatuto da Guarda, em 1925, as ações dela foram regulamentadas por decretos emitidos pelo chefe de polícia.[50]

O inspetor Gouvêa era auxiliado por sub-inspetores no comando da G. do C. do P. Muitos deles eram policiais militares. Os guardas, em sua grande maioria, advinham de segmentos pobres da população, sem ofício prévio na polícia. Isso fazia ser nebulosa a linha que delimitava a polícia estatal de uma polícia particular, paga. Na verdade, ao noticiarem o cotidiano da G. do C. do P, muitos jornais usavam mais o termo “Polícia do Cais do Porto” do que propriamente “Guarda”. Essa confusão em sua classificação dialogava com o seu caráter híbrido: além de formada por policiais e civis e de responder à proteção da propriedade de seus pagantes, ela podia ser acionada pelo chefe de polícia para a repressão a greves, aquartelamentos e uso pela Polícia Marítima para aumento de efetivo em suas rondas marítimas. Tal caráter compartilhado de seu uso era comum a outras instituições de segurança paga existentes na cidade, como as guardas noturnas.[51] Nos anos iniciais, a G. do C. do P. ficou sob a alçada do Corpo de Investigações e Segurança Pública. Posteriormente ela foi incorporada à Polícia Marítima, em 1923, passando a responder ao 3º delegado auxiliar, que encaminhava todas as ocorrências ao chefe de polícia para ele se manter a par do desempenho cotidiano do grupo de segurança paga.

O quartel da corporação inicialmente ficava situado na praia do Caju, passando anos depois à Avenida Rodrigues Alves, n.823. Em 1926, ela ganhou também como base o Posto Especial da Polícia Marítima, criado na Ponta do Caju. Em relatório enviado ao Jornal do Commercio, o inspetor Gouvêa relatava serem a Ponta do Caju, o Retiro Saudoso e os portos de Inhaúma e Maria Angu, pontos do subúrbio, tão quanto várias ilhas, os “antros” dos piratas do mar que operavam com o contrabando: eram pontos onde eles se concentravam e escondiam o fruto de suas piratarias, onde a polícia, ao fazer incursão, era recebida a tiros.[52] Gouvêa contava centenas de pessoas que se entregavam à prática do contrabando, chegando a formar “colônias de contrabandistas que viviam disso exclusivamente, famílias inteiras, núcleos arregimentados em que até as mulheres e as crianças tinham tarefas determinadas”.[53] Escrevia que nesses lugares, dotados de “sórdidos barracões, onde tudo faltava, desde a estética à higiene”, muitas das habitações serviam para abrigar comparsas, nas quais eram improvisados alçapões e esconderijos para ocultação de furtos, além de terem bibocas em diques e estaleiros para entrada de embarcações usadas pelos contrabandistas durante as suas investidas.

Sua perspectiva ganhava respaldo na página de jornais da grande imprensa carioca. A Ponta do Caju era particularmente retratada como uma “Favela marítima” por determinados veículos da imprensa (ver foto I) desde meados da década de 1910, quando o conceito é popularizado como sinônimo de “lugar violento” nas páginas policiais cotidianas. Esta associação seguia a lógica de correlação entre caracterização dos espaços da cidade de acordo com o público que os frequentavam, pela qual fica explícito o elitismo que permeava a forma como os jornais publicavam suas notícias. Além disso, o sensacionalismo, estratégia usada por jornais para atração de leitores pela massificação da produção de notícias com conteúdos polêmicos e que chocavam os leitores, contribuía para a caracterização em demasia destes espaços como os covis dos mais sórdidos atos humanos. Muitos jornalistas enviados para fazer estas reportagens não frequentavam esses espaços: tiravam seus relatos ou das próprias delegacias de polícia de onde colhiam informações ou pontualmente visitavam as favelas para conseguirem testemunhos locais que corroborassem com o relatado em seus textos. Portanto, exprimiam uma construção social do espaço empreendido por aqueles posicionados como estrangeiros a ele, na qual a voz dos seus habitantes era sobrepujada pela narrativa policialesca oficial dos jornais, usada para atender e dialogar com a visão de mundo e interesses de setores abastados urbanos e da classe comercial carioca.

Em certas reportagens especiais de primeira página, jornais apresentavam aos leitores um canto da cidade pouco conhecido por eles, composto por barracos precários (foto II) que escancaravam a pobreza e periculosidade de regiões próximas até demais de um ponto tão importante quanto o porto. Segundo A Rua, tanto o Retiro Saudoso quanto a Ponta do Caju e os portos de Maria Angú e Inhaúma, pontos do subúrbio, serviam de pontos estratégicos usados por uma ladroagem marítima bem sofisticada, que deixava patente as falhas do combate ao contrabando na Baía. Segundo a reportagem, nestas localidades de pescadores:

Diariamente surgem as moradas. Na beira da praia, fincam uns páos (sic); levantam-se taboas e faz-se o barracão. Nos fundos da nova habitação ha sempre um compartimento que tem uma espécie de alçapão ou fundo falso.

Ha uma investida da polícia. As autoridades organizam uma “canôa” (sic) e vão aos centros em que se homisiam (sic) os piratas do mar.

As mercadorias furtadas e que para ali foram transportadas nas embarcações de propriedade dos amigos do alheio, encontram-se no tal compartimento e, precipitadamente, são jogadas pelos alçapões ao mar… (A Rua [Rio de Janeiro], ago. 29, 1923: 175. Autor desconhecido.)

Observa-se através da reportagem, como as casas que formavam as colônias de pescadores pobres nestes lugares são representadas por antros do crime. É uma imagem destoante da representação de pescadores considerados pioneiros da moderna Copacabana. Julia O’Donnell mostra a recuperação dos primórdios do bairro aristocrático, que naquela época atraía investimentos da especulação imobiliária e passava a ser sensação, residência das classes mais ricas da sociedade carioca. A procura por se criar uma história fundadora para o bairro inspirada em valores positivos, correspondentes a como os segmentos cariocas abastados se auto-concebiam, fez com que se criasse uma narrativa bucólica de que, em seus primórdios, quando ainda era um areal, Copacabana havia sido habitada por pescadores destemidos os quais acolheram com harmonia as “marchas do progresso” que lá chegavam com o desenvolvimento de sua ocupação.[54] Este discurso, reproduzido por jornais locais e moradores, contrasta com o tratamento dado aos espaços portuários suburbanos. Explicitam questões de classe as quais, como Low mostra, atravessam a construção social do espaço e levam à sua definição e caracterização com a mudança de tratamento dada a um mesmo conjunto de trabalhadores de acordo com o público ligados aos seus espaços de moradia.



Foto I
Título de uma notícia da Gazeta de Notícias, pero qual se comprova a expansão do conceito de “favela” para além de habitações de pobres nos morros da cidade. “Favella marítima” foi usado como um sinônimo para a referência à colônia de pescadores pobres na Ponta do Caju. Gazeta de Notícias [Rio de Janeiro], ago. 22, 1915: 232.



Foto II
Duas localidades, Retiro Saudoso e Ponta do Cajú, retratadas como pontos de origem dos ladrões do mar. A Rua [Rio de Janeiro], ago. 29, 1923: 175

A forte carga preconceituosa e as influências de classe que atravessam as falas do sargento e dos jornais ao retratarem as localidades direcionavam a G. do C. do P. a uma atuação contundente naqueles pontos. Das suas incursões, saíam variadas apreensões. Em 13 de setembro de 1921, por exemplo, foram encontradas sacas de café roubadas pertencentes às firmas Soares & C. e Graça & C. em duas chatas ancoradas próximas a barracões na ponta do Caju.[55] Noutra diligência, foi recolhida grande quantidade de dinamites procedentes de Hamburgo no porto de Inhaúma.[56] A Ponta do Caju, ainda que fosse caracterizada de maneira generalizante pelos jornais, era para onde ladrões do mar levavam muitos de seus produtos roubados para armazená-los, antes de transportá-los a seus compradores.

Deste modo, localidades a exemplo dos subúrbios, geralmente tratadas por diferentes estudos como apartadas do núcleo urbano da cidade, comumente associadas a espaços de precariedade e pobreza contrapostos ao Centro da cidade, moderno, na verdade se articulavam às dinâmicas sociais que nele ocorriam, sofrendo especializações de funções que podiam ser dadas às suas edificações. Propomos usar o mesmo sentido operado por Gribaudi para entender estes espaços mais afastados como intrinsecamente conectados a espaços “centrais” e “modernos”.

Nos primeiros anos de serviço, a G. do C. do P. recebeu elogios em demasia pela sua eficiência nas patrulhas. Ela alcançou o resgate de maciças somas de contos de réis em mercadorias que tinham sido extraviadas de armazéns, chatas e outras embarcações. A partir de denúncias recebidas pelos seus assinantes, a Guarda acionava seus investigadores que, após a apuração, traçavam a rota de mercadorias contrabandeadas. Chegava, através disso, aos “intrujões”, comerciantes receptadores de produtos que sabiam serem roubados. Eles se valiam da venda destes produtos por um preço abaixo da linha de mercado pelos contrabandistas para lucrarem com suas revendas.

O desempenho da G. do C. do P. revelava uma extensa rede de contrabando que conectava diversas lojas espalhadas por bairros próximos do porto, em especial a Saúde.[57] Um lugar bem citado é a avenida Senhor dos Passos. Vicente Reis escreve sobre uma loja presente ali, propriedade de um “tal de Braga”. Pela sua história, mostra como se dava a relação entre gatunos e comerciantes. Receptador de roubos e furtos, comprava de tudo: mantimentos, calças, vestidos de senhora, roupa branca, botinas.[58] À noite, depois das dez, Braga fechava seu negócio e deixava aberta uma portinha de sua loja que dava para a rua do Núncio, por onde entravam arrombadores e batedores com suas amostras. Servia-os com parati e arrebatava o que haviam subtraído durante o dia, inclusive combinando com eles assaltos de acordo com os produtos que procurava. Fazia assim suas encomendas, e pagava os gatunos acima da média. Noutro episódio, o famoso gatuno Doutor Cornélio apresentava como principais compradores de artigos de luxo furtados as pequenas joalherias espalhadas pela cidade, que compravam os roubos por preços abaixo da linha de mercado para os revenderem mais baratos do que seus concorrentes.[59] Muitos policiais entravam na cadeia de contrabando para enriquecerem ilicitamente, ao exigirem propina aos comerciantes delatados por seus gatunos parceiros, quando estes eram presos. O jornal A Razão creditava os casos de corrupção à Inspetoria de Investigações e Segurança Pública, departamento da polícia civil responsável por solucionar casos de crime contra a propriedade privada na cidade.[60] A impunidade levava ao que o jornal chamava de epidemia das moambas, ou seja, a multiplicação de casas comerciais receptadoras de contrabando. Grande parte delas pertencia ao baixo comercio. Algumas, como a casa Aguiar, situada na avenida Senhor dos Passos, 66, eram casas comerciais atacadistas.[61] Ou seja, compravam mercadoria roubada e barateada em larga escala para a revenderem a outras empresas do varejo. A demanda diversificada por produtos vindas destes estabelecimentos levava seus provedores, os contrabandistas, a variarem em suas listas de roubos.

Nesta cadeia de contrabando atuavam comerciantes de todo tipo de nacionalidade, alguns detentores de conexões com outros países, como Argentina e Uruguai. O jornal A Rua se referia, por exemplo, ao caso de comerciantes árabes e turcos operando na rua da Alfândega, Candelária, numa rede de contrabando de seda, os quais tinham contatos em Montevidéu e Buenos Aires e que estavam sendo impactados pelo serviço da G. do C. do P.[62] Seus agentes eram responsáveis pela compra de seda contrabandeada nas cidades platinas, transportadas do Rio de Janeiro. A Razão cita o caso do intrujão “João Turco”, o sírio dono da casa Aguiar, que consumia seda roubada para revendê-la.[63] As notícias mostravam como estabelecimentos comerciais acabavam servindo como depósito de mercadorias roubadas. Em 14 de fevereiro de 1922, a Gazeta de Notícias cobriu as diligências na rua Camerino n. 12, barbearia do português Manoel da Silva, 58, no 8º distrito.[64] O movimento intenso de suspeitos atraíra uma denúncia anônima. Mobilizados, os agentes da Guarda foram até o endereço, onde interrogaram Silva e prestaram averiguações, encontrando numerosos produtos contrabandeados em um quarto dos fundos. Durante o serviço, um muambeiro adentrara o recinto sem perceber a movimentação e acabou preso pelos guardas e encaminhado para a delegacia local.

Com a sua boa produtividade no resgate de mercadorias, a corporação adquiriu mais clientes e propôs expandir o seu espaço de policiamento. O alargamento de jurisdição da G. do C. do P. por iniciativa própria imbricou numa disputa pelo espaço protagonizado por ela e pelas guardas noturnas em 1923. Ela evidencia a dificuldade em se definir o que era propriamente o Cais do Porto.

Resgatamos Low para reafirmar como a disputa pelo espaço exprime a complexidade e os interesses políticos e ideológicos por trás de sua definição. A área portuária era recortada por uma heterogeneidade de espaços de policiamento pertencentes ao mercado da segurança local que concorriam por ruas para recebimento de receitas. O estopim foi quando o novo comandante da G. do C. do P., Marques Polônio, depois do aval do chefe de polícia, produziu uma circular que exorbitava seu espaço de policiamento, incluindo nele quarteirões de bairros do Centro dentro da área do Cais do Porto. Imediatamente as guardas noturnas reagiram. Elas eram organizações de vigilância de bairro paga que zelavam pelas propriedades de seus assinantes à noite. Pressionaram o chefe de polícia, reivindicando o cumprimento do Estatuto Geral das Guardas de Vigilantes Noturnos em voga, que “vedava a participação de duas guardas noturnas em um mesmo bairro”. As críticas eram de que a G. do C. do P. estava se intrometendo em atribuições das guardas noturnas e não possuía um regulamento oficial que validasse a expansão de suas atividades para áreas sob o policiamento daquelas.[65]

Ao ser acionado, o chefe de polícia anulou a expansão da jurisdição da G. do C. do P. Cerca de um mês e meio depois, editou um decreto (I) regulamentando as áreas de ação da corporação, fixando-as à plataforma dos armazéns do Cais do Porto, trapiches e armazéns de mercadorias na zona do Cais do Porto e na parte compreendida entre as ruas da Saúde, Santo Cristo, Alpha (sic), plataformas e Praça Mauá; (II) autorizando a G. do C. do P. a fornecer guardas ocasionais para serviços em estabelecimentos à beira mar e permanentes para os mesmos e os trapiches e armazéns de café que tivessem interesse no Cais do Porto, ainda que fora da zona delimitada, sob aval do chefe de polícia, entre outras resoluções.[66]

No entanto, sua resposta parece não ter sido suficiente. O comandante da Guarda de Vigilantes Nocturnos do 8º Distrito Policial (freguesia de Sant’Anna), Francisco Antônio de Farias, enviou um documento em resposta.[67] Nele, reclamava que seu grupo era prejudicado pela G. do C. do P. desde sua criação, quando esta abocanhou ruas pelas redondezas do Cais do Porto antes vigiadas pelos seus homens, onerando assim os cofres da sua instituição. Escrevia que nas instruções que regulamentavam provisoriamente as funções da G. do C. do P., havia a orientação de rondarem trechos entre as ruas da Saúde e Santo Cristo, não estando evidente se estes dois limites estavam ou não excluídos da jurisdição daquela corporação, ou seja, a área do Cais do Porto. Como parecia que elas estavam inseridas na jurisdição da G. do C. do P., o comandante apontava que ela sugava uma contribuição importante de “vários armazéns e trapiches cujas contribuições são mais elevadas e que se forem retiradas, trarão fatalmente a dissolução da guarda noturna, cuja renda já é pequena”, o que faria os “demais habitantes do Distrito privados da necessária vigilância”. Isso porque, como a sua guarda noturna era confinada a toda aquela freguesia, a perda de receita em uma área limitada dela, porém de farta importância econômica, faria com que a corporação não conseguisse se sustentar e perigasse falir, deixando ruas em outros trechos de Sant’Anna onde atuava consequentemente despoliciadas à noite. O comandante finalizava seu ofício pedindo que o chefe de polícia considerasse suas ponderações e reavaliasse o seu decreto. O chefe de polícia então emitiu um comunicado ao comandante da G. do C. do P. para que restringisse sua patrulha à faixa do cais na freguesia.

O que esse evento mostra é, primeiramente, que a definição do espaço do Cais do Porto não era fixa e pré-determinada: ele não era a priori estabelecido de forma acabada pelo chefe de polícia antes da Guarda ser inaugurada, mas ia sendo construído a partir de um processo de negociação com outros grupos de policiamento pago que operavam na região portuária, sob a mediação dele. Esse espaço de caráter jurisdicional podia alargar ou encolher e seu escopo dependia de quem procurava determiná-lo segundo os seus interesses políticos e econômicos, o que aponta o seu caráter relacional e as disputas inerentes a ele. Em segundo lugar, o protagonismo do próprio espaço local, com suas características econômicas, revela como ele era capaz de estimular o processo histórico não somente de formação de um mercado da segurança local, mas também da delimitação de suas atribuições. Em terceiro lugar, observamos como as dinâmicas sociais no cais do porto, que era uma parte das freguesias locais, tinham efeitos entrelaçados a toda a extensão delas. Dessa forma, nos perguntamos: seria certo pensar o alcance das práticas sociais da G. do C. do P. e seus alvos apenas à demarcação espacial determinada pelo seu estatuto? O caso relatado nos mostra que não.

4. Considerações finais

Ponto de entrada do exterior, a região portuária do Rio de Janeiro era imperativa para o funcionamento da cidade. Lá circulavam mercadorias, pessoas e ideias que formavam uma rede de interesses díspares ou confluentes. A complexidade de se definir bem essa região é refletida na multiplicidade de sujeitos que a frequentavam e a experimentavam de distintas maneiras e de obras que a estudam. Estas marcam as múltiplas temporalidades existentes naquele espaço, seus diversos usos sociais e significações. Ao pormos o espaço no centro de análise para entender as dinâmicas sociais desprendidas naquela região, percebemos como uma parte sua – a área do Cais do Porto –, com a sua materialidade, foi diretamente determinante para que ladrões do mar elaborassem estratégias de roubo que alimentavam a cadeia de contrabandos de produtos na cidade, estabelecida em diferentes pontos dela.

Espaço tanto construído socialmente a partir das diferentes apropriações de seus significados, quanto produzido pelos efeitos gerados através do modelo de acumulação capitalista, como a intensificação na circulação de mercadorias e pessoas, demonstrou-se neste artigo como ele se interligava a diferentes partes da cidade, como os subúrbios, pelo circuito de contrabando e de repressão exercida pela G. do C. do P.

Por outro lado, desvelou-se como o Cais do Porto era também um espaço jurisdicional que sofria um processo de negociação entre a G. do C. do P. e outras forças coercitivas locais, as guardas noturnas. Engendrando disputas por seu controle e limites, esse espaço, cuja determinação se construía a partir de negociações impulsionadas por disputas de interesses econômicos e políticos, acabou provocando a delimitação de características do próprio policiamento pago feito nele, ao forçar a intervenção do chefe de polícia para estabelecer novas regras de funcionamento da G. do C. do P. Com isso, entendemos o espaço do Cais do Porto não apenas como uma arena neutra, cenário onde eventos históricos ocorriam. Nem é uma área pré-determinada, mas que é construída ao longo do tempo pela ação humana, que negocia quais ruas e bairros faziam parte dele. Isto mostra como este espaço é dotado de agência histórica, cuja materialidade levou à formação do mercado de vigilância especializada na repressão ao contrabando e às modificações em suas características.

5.1. Obras citadas

5.2. Fontes

Arquivos:

Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro, Brasil. Fundo 001 – Administração do Porto do Rio de Janeiro.

Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro, Brasil. Fundo GiFi Documentos de Polícia.

Periódicos:

A Noite (Rio de Janeiro, 1919)

A Razão (Rio de Janeiro, 1920)

A Rua (Rio de Janeiro, 1915, 1923)

Correio da Manhã (Rio de Janeiro, 1919, 1923)

Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, 1915, 1919, 1920, 1922)

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, 1919)

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, 1926)

Jornal do Commercio – Edição da Tarde (Rio de Janeiro, 1919)

Livro:

Reis, Vicente. Os ladrões no Rio. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1903.

5.3. Bibliografias

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Notas

[3] Este debate está sendo travado por historiografias em outros países. Recentemente, foi publicado um livro que trata do policiamento pago e da crítica às concepções de monopólio da violência e às oposições bem definidas entre público-privado: David Churchill et al, coords. Private Security and the Modern State: Historical and Comparative Perspectives. (Abingdon: Routledge, 2020).
[14] Outro problema era o tamanho das docas que foram criadas no ínterim entre o fim do XIX e meados do XX e a lentidão no serviço de capatazia nelas, o que levava a um congestionamento de navios e menor ritmo no embarque e desembarque de mercadorias no porto carioca. Os trapiches sofriam das mesmas dificuldades.
[18] Arantes demonstra como a imprensa retratava os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo por lugares violentos e lar dos “bambas”, “antro” de estivadores infames. Por outro lado, mostra (implicitamente) o papel do espaço portuário no condicionamento do trabalho portuário a características específicas. Essas características, por sua vez, moldavam a forma pela qual esses trabalhadores eram vistos. Isso se dá, por exemplo, na confusão dos estivadores como homens vadios, quando eles se valiam de estratégias de dormir perto do local de trabalho, muitas vezes ao ar livre para adquirirem mais chances de serem chamados para algum bico. Noutras vezes, dormiam ao relento por não terem dinheiro para pagar a noite numa hospedaria.
[21] Mas alertamos que a definição desse espaço enquanto formado por essas áreas era feito pelo estatuto da Guarda do Cais do Porto, cunhado em 1925. Como veremos, ele não existia naturalmente antes da sua definição, mas estava sujeito a um processo de negociação sobre o que ele era. Conferir: Sociedade Civil Mantenedora da Guarda do Caes do Porto – Estatutos e Instrucções da Chefatura de Polícia, 1926. Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro, Fundo 001 – Administração do Porto do Rio de Janeiro, unidade de arquivamento 154, vol. XXIII.
[24] Ídem.
[28] A Noite [Rio de Janeiro], dez. 30, 1919: 2.892.
[30] Sobre Prata Preta, Leonardo Pereira esmiuça a sua representação e a do espaço onde morava em: Leonardo Pereira. As Barricadas da Saúde – Vacina e Protesto Popular no Rio de Janeiro da Primeira República. (São Paulo: Perseu Abramo, 2002): 75-80.
[34] “Ladrões do mar” era como eram chamados os homens que roubavam produtos das embarcações mercantes. Após isso, eles geralmente as vendiam. Eram chamados também de piratas, moambeiros e contrabandistas.
[36] Vendedores ambulantes que subiam em embarcações quando elas atracavam, para venderem seus produtos.
[38] Ídem.
[41] Os jornais destacam, em 1919, como o porto era deficiente para atender à crescente demanda comercial surgida com o fim da guerra. Ajustes fiscais feitos pelo governo federal tinham diminuído o número de guardas da Alfândega para a fiscalização de entrada e saída das mercadorias. Somado a isto, havia uma quantidade baixa de armazéns e o estado de muitos os deixava inutilizáveis. Correio da Manhã [Rio de Janeiro], fev. 19, 1919: 7.298.
[43] Outro detalhe era a falta de espaço nos armazéns da Alfândega e de trapiches, que provocava a demora na descarga das mercadorias e consequentemente fazia com que a capatazia durasse mais do que o desejável, com ritmo mais lento.
[49] Uma relação apresentada por Gouvêa mostra a quais eram estas empresas: Royal Mail Steam, Lamport & Holt L., Navigazione Generale Lt., Munson Line, Chargeurs Réunis, Lloyd Sabaudo, Transports Maritmes, Hamburgo America, Hamburg Sud., Osaka Shosen Taisha, Norddeuttsche Lloyd, Don Norske Sydan, Sud-Atlantique, Johnson Line, Wilhemsem Line, Rotterdam Zuid-Am. L., Naviora Soda y Azmar, Booth Line, Skogland’s Line, Prince Line, A. G. Hugo Stinnes, Det Forenede Damps, La Veloce, United America L. Inc., Nippon Yusen Kaisha, Rio de Janeiro Lighterage, Lamport & Holt., Herm. Stoltz & Co., Lage Irmãos, Empresa Neptuno, Avelino Passos, Wallace &¨Co., Lloyd Nacional, entre outras. Jornal do Commercio [Rio de Janeiro], mai. 29, 1926: 147.
[50] Geralmente, a regulamentação das atividades de corporações semiprivadas de segurança encontrava eco no Congresso Nacional e era discutidas por políticos. Contudo, não foram achadas discussões sobre a G. do C. do P. na hemeroteca digital, acervo usado para esta pesquisa.
[55] O Paiz [Rio de Janeiro], set. 13, 1921: 13.477.
[56] Correio da Manhã [Rio de Janeiro], nov. 22, 1923: 9.023. As dinamites poderiam ser usadas para a prática ilícita de pesca por explosão. Eles eram tacados na água para explodirem e matarem os peixes com suas ondas de choque. Esperava-se então os corpos dos peixes emergirem na superfície para serem recolhidos.
[57] Uma reportagem d’A Rua afirmava que os negociantes com hospedarias na Saúde davam recinto para os gatunos que por lá andavam, em troca de obterem produtos furtados para sua revenda. O bairro é retratado como “quartel general dos arrombadores”. A Rua [Rio de Janeiro], out. 24, 1915: 294.
[60] A Razão [Rio de Janeiro], nov. 16, 1920: 1420. O jornal diferenciava os negociantes honestos dos receptadores.
[67] Inspectoria Geral das Guardas de Vigilantes Nocturnos, nov. 19, 1923. Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro, Fundo GiFi Documentos de Polícia, caixa 6c538.


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